Câncer é a área terapêutica na qual a indústria
farmacêutica tem investido mais recursos para encontrar novos tratamentos (veja aqui). Existem várias razões para isso incluindo
o fato de que o câncer está se tornando mais comum como consequência do
envelhecimento progressivo da população mundial.
O que câncer tem a ver com acondroplasia ?
O câncer tem muitas facetas e novas medicações para
combater esta doença (ou doenças) desafiadora estão sendo desenhadas agora para
bloquear os mecanismos pelos quais as células cancerosas se tornam capazes de
sobreviver, se multiplicar e se espalhar pelo corpo (metastatizar). Não é
surpresa descobrir que os mecanismos usados pelas células cancerosas são os
mesmos das células normais, mas em uma intensidade desproporcional.
Por exemplo, as células cancerosas se aproveitam
das propriedades funcionais das enzimas receptoras celulares tais como o receptor
de fator de crescimento de fibroblasto do tipo 3 (FGFR3). Como você
pode recordar, a atividade excessiva do FGFR3 reduz o ritmo de proliferação
(multiplicação) e de diferenciação ou hipertrofia (maturação) do condrócito, o
que por sua vez leva à parada do crescimento do osso. Em alguns tipos de
câncer, tais como o mieloma múltiplo e o câncer de bexiga, a ativação do FGFR3
provoca exatamente o efeito oposto: as células doentes se multiplicam
livremente e o câncer cresce sem parar.
Saber como enzimas, tais como o FGFR3, são
utilizadas pelo câncer faz delas alvos naturais para novas terapias. Neste
sentido, a acondroplasia tem se beneficiado bastante com a pesquisa
contra o câncer.
Vamos começar a olhar para reações químicas
celulares aqui e o texto poderá não ser exatamente como o de uma receita de
bolo de chocolate. Por isso, andaremos passo a passo e eu vou tentar ilustrar o
melhor possível para torná-lo mais fácil para o leitor.
Já aprendemos que podemos bloquear o FGFR3 fora da
célula com anticorpos ou aptâmeros (veja os artigos anteriores). Também podemos
inibir o FGFR3 no interior da célula. Na última
década, resultantes do aumento do conhecimento da maquinaria
celular, surgiram os inibidores de tirosina quinase (TKI),
uma grande classe de drogas que bloqueiam a ativação de enzimas
receptoras no interior das células.
Os inibidores de tirosina quinase
Diversos TKIs já estão sendo
utilizados no tratamento de muitos tipos de câncer. Eles
agem impedindo o fenômeno que inicia a cascata de
sinalização da enzima depois que um ativador do receptor se
liga a ele, fora da célula. Tomando como exemplo o FGFR3,
já vimos isso: o FGFR3 é “ligado” quando um ativador (um
ligante, um FGF) se liga ao seu domínio extracelular. O receptor atrai outro FGFR3 e
eles formam um casal (um dímero). O dímero modifica seu
corpo conjugado, provocando a exposição dos chamados bolsos de
adenosina trifosfato (ATP) na parte intracelular de ambos
os receptores, que são como tomadas elétricas. Esses plugues elétricos atraem as
moléculas de ATP. Pense nos ATPs como baterias capazes de
transferir energia através de cabos em um carro. No caso
dos ATPs, esta transferência de energia é realizada pelo
deslocamento de átomos carregados (íons). A chegada e o
acoplamento dos ATPs com fosfatos carregados aos bolsos
de ATP, o que nós denominamos fosforilação, vai
atrair outras proteínas nas proximidades, uma após a outra,
produzindo a cascata de reações químicas que, no final, irá
estimular o núcleo da célula para a produção de novas
proteínas ou inibir a produção de outras,
ou irá estimular ou bloquear a capacidade da
célula para se multiplicar.
O evento descrito aqui não é exclusivo
do FGFR3: os outros FGFRs e muitas outras
enzimas receptoras fazem o mesmo para transmitir seus
sinais ao núcleo. Este é um conceito importante porque representa
um dos grandes desafios para encontrar o bloqueador
de TKI certo para o FGFR3. Este link irá levá-lo a uma animação que
mostra a cascata de sinalização do receptor de fator de
crescimento epidérmico (EFGR), que é uma
enzima receptora que trabalha de um modo similar ao do
FGFR3 (você vai precisar assistir apenas aos dois primeiros
minutos da animação).
TKI são pequenas moléculas desenhadas
para se ligar e “fechar” os bolsos de ATP nos domínios intracelulares das
enzimas receptoras. Eles funcionam como aquelas capas que
usamos nas tomadas para proteger as crianças de choques
elétricos (figura).
Antes de continuarmos, convido você
a seguir este link, que o levará a uma animação que
mostra o mecanismo de ação do lapatinibe, um TKI desenhado
para bloquear o EGFR. Isto é apenas para fins de ilustração da
ação de um TKI e não se destina de modo algum a promover a droga.
A ideia é simples: com os bolsos de
ATP fechados, os ATPs não podem transferir fosfatos e a cascata
de sinalização não inicia. Parece uma solução atraente. As
moléculas de TKI são pequenas e eficazes, então qual
é o problema?
Os bolsos de ATP apresentam grande homologia (têm
estruturas semelhantes) na maioria das enzimas receptoras,
então a chance é grande de que um TKI em
particular irá bloquear várias
enzimas distintas pertencentes à famílias diferentes. Esta é a
realidade. Já existe um bom número de inibidores de
FGFR desenvolvidos (veja uma lista pequena e parcial
abaixo). Você percebe que eu não coloquei um número
após o acrônimo da enzima. Isto significa que é muito
provável que um TKI desenhado para bloquear um dos FGFRs irá
muito provavelmente bloquear todos os outros, também, dada a semelhança
que compartilham. Na verdade, os primeiros TKI desenvolvidos
bloqueiam um grande número de enzimas distintas. Os mais
recentes são mais específicos, como resultado do melhor entendimento das
interações químicas entre as moléculas e também com o lançamento
de programas mais sofisticados de design de moléculas.
TKIs anti-FGFR disponíveis:
- PD173074
- PD106067
- TKI258 (dovitinib)
- Brivanib
Uma questão que
naturalmente ocorre a alguém que pensa no tratamento
da acondroplasia: TKIs alcançam a placa de crescimento? A
resposta é sim. Por exemplo, testes feitos com o PD176067 mostraram aumento em
ambas as zonas proliferativa e hipertrófica da placa de
crescimento cartilaginosa, um efeito que foi considerado uma
reação direta ao composto testado.
Os TKIs listados acima bloqueiam
o FGFR3, mas também os outros FGFRs e / ou enzimas das
famílias PDGFR (receptor do fator de crescimento derivado
de plaquetas) e VEGFR (receptor do fator de crescimento endotelial
vascular). Este link leva você a uma recente
revisão técnica sobre a inibição dos FGFRs em câncer.
Recentemente, trabalhos com dois novos inibidores
do FGFR3 foram publicados: o NF449 e
o A31. Ambos parecem mostrar atividade mais
específica contra o FGFR3 do que outros compostos predecessores. Se os testes
pré-clínicos continuarem a trazer resultados positivos, uma molécula como a A31
poderia chegar à fase clínica em três a cinco anos.
Em resumo, inibidores da tirosina quinase
apresentam várias evidentes características positivas:
• São pequenos
• Alcançam a placa de crescimento
• Podem ser administrados por via oral
• Estão se tornando mais e mais específicos (na acondroplasia, eles têm que ser)
TKIs são uma opção promissora para o
tratamento da acondroplasia. É necessário redobrar os esforços
para aumentar a velocidade da pesquisa para o desenvolvimento desses
compostos mais específicos.
No próximo artigo, vamos continuar nossa
jornada no interior do condrócito. Ainda temos outras
opções em termos de bloqueio da sinalização do FGFR3.
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