Sunday, February 12, 2012

O mundo do RNA: desligando o FGFR3 na acondroplasia


"Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que a tua vã filosofia pode imaginar", disse um estressado Hamlet na famosa obra-prima de Shakespeare. Nunca esta frase tão famosa foi tão atual como agora, pelo menos para a Ciência.

Enquanto os pesquisadores cavam mais e mais fundo para desvendar as complexidades da vida, toneladas de novos conhecimentos são adquiridas e nosso mundo se torna mais rico - e mais complicado. Esta é a pura verdade para quem começa a ver como é intricado o controle dos genes.

O mundo químico funciona como Lego

Antes de continuarmos, vamos estabelecer um conceito que pode ajudar na compreensão das complexidades da interação entre as biomoléculas. Com milhares de proteínas e ácidos nucléicos trabalhando juntos, qualquer um pode ficar perdido apenas tentando lembrar-se de cor da sopa de letrinhas que descreve os nomes de todos esses compostos.

Então, vamos tentar colocar de uma forma simples: olhe para estas muitas moléculas produzindo suas reações através de acoplamentos em uma miríade de combinações, como fazemos com blocos de Lego.

É claro que, apesar de que blocos de Lego terem muitas formas diferentes, você terá que usar sua imaginação e pensar em muito mais formas de combinações para fazer justiça às biomoléculas. Alguns destes blocos podem ter pinos maiores, outros irão combinar apenas com triângulos, blocos redondos amarelos claros combinarão apenas com amarelos escuros, e assim por diante.

Quando falamos de ácidos nucleicos (DNA e RNA), o outro termo usado para descrever a forma como, por exemplo, o DNA existe na clássica cadeia de dupla hélice (figura), é a complementaridade. Neste caso, apenas para relembrar, os quatro nucleotídeos que formam o DNA são combinados assim: A combina com T e C liga-se com G. Se uma das fitas da cadeia de DNA (vamos chamar essa fita de senso) é constituída por ATG CGA , a outra fita (a fita anti-senso) deve ser TAC GCT. Assim, dizemos que TAC GCT é complementar à CGA ATG. Se falamos de RNA, o T é substituído por um U.

Figura. Estrutura do DNA.

O resultado da combinação mecânica de blocos de Lego em modos específicos levará a belas figuras ou personagens. Milhões de combinações de proteínas e / ou ácidos nucleicos determinam reações químicas através da transferência de cargas eléctricas, para produzir proteínas ou outras moléculas que, no fim das contas, nos tornam o que somos. A riqueza da vida é dada pelo número incontável dessas combinações. Isto é simplesmente fantástico.

Interferência por RNA

No último artigo, começamos a aprender sobre as muitas espécies de RNA que participam na regulação de todos os aspectos do funcionamento da célula. Estes RNAs são classificados como RNAs não-codificantes, ou non-coding RNAs (ncRNAs), porque eles não dão origem às proteínas. Em vez disso, eles regulam ou controlam um ou mais aspectos da maquinaria do núcleo da célula responsável pela ativação ou desativação da expressão dos genes em proteínas.

Vimos que pequenas moléculas de RNA, feitas de cerca de 21 nucleótidos e chamadas de micro RNAs (miRNA), são capazes de bloquear a tradução de proteínas, o processo pelo qual o tipo mais conhecido de RNA, o RNA mensageiro (mRNA), é ' lido'. Se o mRNA não pode alcançar o ribossomo e ser lido, não haverá nenhuma proteína. Para este grande poder, os cientistas deram o nome de interferência por RNA (RNA interference).

Os miRNAs são muito importantes e, teoricamente, se pudéssemos identificar um deles com uma ação específica apenas no mRNA que codifica (leva a informação necessária para produzir) a proteína receptor fator de crescimento de fibroblasto do tipo 3 (FGFR3), metade do caminho estaria andado. A questão é que os miRNAs são específicos para seus mRNAs alvo, mas regulam vários alvos ao mesmo tempo, aqueles que ostentam a seqüência de nucleotídeos que complementa a do miRNA, a qual confere essa sua poderosa qualidade. Como não há atualmente um miRNA natural conhecido exclusivo para o FGFR3, os existentes não são utilizáveis como uma terapia para a acondroplasia.

Os miRNAs são a ponta do iceberg porque existem várias outras famílias de RNAs. Veremos agora outros tipos de RNAs que poderiam ter um papel no controle da produção do FGFR3.

O primeiro grupo destes ncRNAs é chamado pequenos RNAs de interferência (small interfering RNA), ou siRNAs. Os siRNAs são tão pequenos como os miRNAs e compartilham o mesmo tipo de mecanismo de ação. Ambas as moléculas são originalmente de cadeia dupla (elas são combinados em duas fitas complementares do mesmo modo que o DNA).

Um dos mecanismos que controlam a produção de proteínas é governado por um complexo de proteínas chamado RISC. Há um lugar dentro deste complexo RISC onde miRNAs e siRNAs podem acoplar. Quando completo, o RISC se liga a um mRNA. Se o miRNA ou o siRNA dentro do RISC complementa uma parte específica do mRNA, o RISC estaciona e atrai outra enzima que degrada o mRNA, impedindo assim a produção da proteína que aquele mRNA codifica. Assista a esta animação da interferência de RNA fornecida pela revista Nature. Ele vai ajudar você a entender o processo.

A forma dos miRNAs torna difícil eles serem introduzidos a partir do exterior. Várias enzimas denominadas nucleases estão presentes na corrente sanguínea, no citoplasma e no núcleo da célula. Eles são uma formidável barreira para a administração de fragmentos de RNA (como os miRNAs) para as células por causa da sua afinidade com os ácidos nucleicos. Nucleases são extremamente importantes para a nossa defesa, pois elas degradam fragmentos de ácidos nucléicos que poderiam ser parte de um organismo invasor (vírus etc.)

Para superar esta limitação natural, investigadores têm introduzido um grande número de modificações químicas nas moléculas de RNA para melhorar a sua resistência às nucleases, mas miRNAs são menos flexíveis que siRNAs a estas modificações. Podemos construir uma molécula de siRNA? A resposta é sim. Alguns siRNAs já estão em estudos clínicos e um par já foi aprovado para utilização em algumas indicações clínicas.

Além disso, o FGFR3 tem sido alvo de experimentos com siRNAs. Veja este artigo recente publicado pelos Drs. Laurence Legeai-Mallet e José Pintor, onde eles exploram a interferência de RNA em condrócitos humanos com acondroplasia.

Este trabalho é uma prova de conceito de que podemos usar siRNA para reduzir a expressão do FGFR3. Isso abre a possibilidade de testar siRNAs em um modelo animal apropriado de acondroplasia para ver como é a resposta. O grande desafio aqui é fazer com que o siRNA alcance os condrócitos, como discutimos acima. Falaremos mais sobre isso em outro artigo.

A pesquisa dos mecanismos dos ncRNAs também mostrou uma outra característica destas moléculas que pode ser utilizada para reprimir a síntese de proteínas. Uma conformação particular adotada por algumas espécies de RNA pode bloquear a leitura de um mRNA. Esta conformação, que para os cientistas que a descreveram parecia um pino de cabelo, é chamado literalmente de hairpinShort hairpin RNAs (shRNA) têm sido largamente utilizados nos laboratórios para que os pesquisadores aprendam como funciona um gene. Usando shRNAs (ou, naturalmente, outros tipos de interferência de RNA, tais como no trabalho do Dr. Pintor) podem aprender as funções de um gene específico através dos efeitos provocados pela ausência da proteína expressa por ele.

Se você quiser saber mais sobre a interferência de RNA, siga estes links para amplas e ricas revisões sobre este apaixonante tema: Kole, Krainer e Altman 2012
Pecot et al. 2011, acesso livre; Broderick e Zamore 2011acesso livre.

Revimos de forma muito simplificada algumas características dos mecanismos envolvidos na interferência de RNA, uma função exclusiva de alguns tipos de ncRNAs. Nós ainda temos uma espécie de RNA para conhecer. 

No comments:

Post a Comment