A Biomarin e o grupo francês chefiado
pela Dra. Laurence Legeai-Mallet acabaram de publicar no American Journal of
Human Genetics um estudo de avaliação dos efeitos do BMN-111 em camundongos: http://www.cell.com/AJHG/abstract/S0002-9297
(12) 00537-X.
O que é importante sobre este estudo?
Este estudo é importante porque traz
resultados mais consistentes dos testes feitos com o análogo do peptídeo
natriurético tipo C (CNP) em um modelo animal de acondroplasia.
Nós já revimos o CNP neste artigo anterior, mas acho que vale a pena ver de novo alguns conceitos. Pode parecer difícil de entender as questões, dada a multiplicidade de siglas, expressões ou o jargão utilizados na linguagem da ciência. Em uma recente mensagem um pai me pediu para explicar mais as implicações deste estudo, de uma forma mais amigável. Vou tentar.
Dessa forma, vamos falar sobre alguns
conceitos que podem ajudar o leitor interessado, mas não especialista, a
entender as implicações do uso de um análogo do CNP no tratamento da
acondroplasia.
O que é o CNP? O que é um peptídeo?
O CNP é uma molécula relativamente
pequena chamada peptídeo e é composto por uma cadeia de aminoácidos
naturalmente produzida pelas células do nosso corpo. Ele é feito da mesma
maneira que as proteínas são: existe um gene no DNA que o codifica (carrega a
informação química necessária para produzi-lo). Imagine que o CNP é uma
espécie de combinação multicolorida de blocos de lego. Proteínas e peptídeos
são exatamente a mesma coisa, sendo denominados de uma forma ou outra de acordo
com seu tamanho, sendo os peptídeos menores que as proteínas.
Também já vimos que muitas proteínas
são chamadas de enzimas dadas as suas propriedades químicas. Essas enzimas
podem catalisar (provocar) reações químicas (grosseiramente, pequenos choques
eléctricos provocados pela transferência de átomos carregados ou elétrons) que
por sua vez irão gerar reações nas células. Proteínas e peptídeos são de fato
os grandes mestres da vida, governando todos os aspectos da vida como a
conhecemos.
A Natureza é inteligente e durante os
milhões de anos de evolução da vida, fez incontáveis experiências químicas para criar
peptídeos e proteínas com propriedades cada vez mais
específicas. Assim, estas moléculas,
embora carregadas eletricamente, apenas reagem com outras moléculas
específicas (ou alvos) que se combinam com elas, da mesma
forma que combinamos certos blocos do lego com alguns outros, mas não com todos
eles.
Esta especificidade das proteínas e
peptídeos é tão importante que as principais moléculas dessa classe, que regem
as reações-chave que permitem a vida, têm uma estrutura básica principal muito
bem conservada na maioria das formas de vida. Em tais proteínas,
dependendo da espécie, vamos encontrar algumas trocas de aminoácidos, alguns
faltando, alguns adicionados, mas a estrutura principal vai estar lá, não importa
o animal que estudarmos. Por que estamos falando sobre isso? Bem, acho que
alguém poderia perguntar por que estamos testando um rato para ver se um
peptídeo pode funcionar no homem, não é? A razão simples é que o CNP (ou uma
molécula semelhante) está presente no homem e nos ratos e na maioria (ou
todas?) das formas de vida mais avançadas na Terra. E o mais importante: ele
faz a mesma coisa em todos elas. O mesmo é válido para o receptor de fator de
crescimento de fibroblasto do tipo 3 (FGFR3).
O que tudo isso tem com acondroplasia?
Vamos continuar nossa pequena viagem revendo
o que estas proteínas e peptídeos fazem.
As proteínas podem atuar do lado de
fora, através de e no interior das células. Aprendemos aqui que o FGFR3, uma proteína
com propriedades elétricas, e portanto, uma enzima, está localizado desativado e atravessado na membrana celular do condrócito. Ele funciona como uma antena, transmitindo
as mensagens de fora para permitir que a célula possa reagir de forma correta. O
FGFR3 fica ali, à espera de ser ativado por uma outra... proteína que, neste
caso, é um fator de crescimento de
fibroblastos (FGF). Quando uma proteína ou um peptídeo age de tal maneira,
a partir de uma reação de ligação ao seu alvo, chamamos de ligante (ligand em inglês, do latim, significando
aquele que se liga ao outro). Assim, os ligantes são como carteiros que entregam
mensagens químicas para endereços específicos em células dos vários tecidos e
órgãos do corpo. O CNP não é outra coisa além de um ligante. Ele tem o seu
próprio receptor na membrana celular dos condrócitos e quando se liga a este
receptor chamado receptor de peptídeo natriurético B (NPR-B), inicia uma
cascata de reações dentro da célula. A função natural do CNP é estimular os
condrócitos a crescer. Mas, como é que ele faz isso?
Reações químicas complexas
Nós aprendemos que as proteínas e
peptídeos foram criados enquanto a vida foi evoluindo (ainda está). Como as
formas de vida foram se tornando mais complexas, várias destas moléculas distintas
também foram se desenvolvendo, levando a funções mais complexas e assim por
diante, em um ciclo virtuoso contínuo. No entanto, normalmente proteínas não
têm a capacidade de decidir se é hora de trabalhar ou de deixar de trabalhar,
têm uma função projetada e uma vez ligadas elas vão trabalhar sem parar. Veja,
com essas moléculas reativas trabalhando sem equilíbrio, a vida não seria
possível e, por isso, mecanismos de controle com base em outras proteínas, também
evoluíram. Para a maioria das reações químicas do corpo existem mecanismos de
controle que regulam a sua intensidade, quantidade, ritmo, frequência etc. Isto
inclui, por exemplo, a forma como o FGFR3 trabalha. Em condições normais, logo
após o FGFR3 ser ativado por um FGF, ele é capturado por um sistema intracelular
feito de outras proteínas e é dirigido para degradação. Em outras palavras, há
proteínas promotoras de reações e há proteínas para impedir que as primeiras
provoquem reações. Curiosamente, esta é apenas uma forma de como é obtido o controle,
ou equilíbrio, da infinidade de reações químicas. Às vezes, para uma cadeia de reações
químicas que existe para uma dada finalidade, há uma outra cascata química para
contrabalançá-la. Poderíamos dizer que a cascata do CNP é um exemplo dessas
outras formas de controle.
Conectando
com a acondroplasia
Vejamos essa figura da
revisão do Dr. William Horton, publicada no Jornal GGH,
em 2006. Ela mostra as cascatas do FGFR3 e do CNP no condrócito e a forma como
elas interagem.
O FGFR3 é concebido para provocar uma série de reações no interior das células onde este receptor é produzido. Para a grande maioria destas células, quando ativado o FGFR3, elas reagirão aumentando a sua proliferação (multiplicação) e as taxas de maturação. A exceção notável é exatamente o condrócito: a mesma cascata de enzimas ativada pelo FGFR3 irá forçar a célula a parar de proliferar e reduzir a sua capacidade de amadurecer. É por isso que dizemos que o FGFR3 é um controlador negativo do crescimento ósseo. Em condições normais, o FGFR3 terá um tempo limitado para exercer os seus efeitos, tanto por causa dos sistemas celulares de controle acima mencionados, mas também porque há pelo menos um outro sistema reduzindo diretamente a ativação da cascata do FGFR3, o sistema do CNP. Como sabemos de tudo isso?
Mutações podem ocorrer em qualquer
proteína, com as consequências mais diversas. No caso do FGFR3, se a mutação
faz com que ele funcione mais ou melhor, vai prejudicar o crescimento. Estudos
em camundongos mostraram que quando você abole a produção do FGFR3, a consequência
é o crescimento excessivo dos ossos. No caso do sistema do CNP, se o CNP ou o
seu receptor forem abolidos o indivíduo afetado terá nanismo. Pelo contrário, uma
mutação no NPR-B tornando-o permanentemente ativado causa crescimento excessivo.
Se você viu a figura acima mencionada, verificou
que a cascata intracelular de reações provocadas pelo CNP intercepta uma das
cascatas mais importantes da via do FGFR3, a chamada quinase (ou cinase) de proteína ativada por mitógeno (MAPK). Este
artigo anterior
analisa a cascata do FGFR3. As enzimas MAPK são responsáveis, principalmente, por reações dentro do núcleo da célula que regulam o ritmo de maturação de
condrócitos, um estágio que chamamos de hipertrofia. Nesta fase, os condrócitos saem
do estágio de proliferação e começam a crescer (hipertrofiam), enquanto iniciam
a produção de grandes quantidades de novos componentes da matriz da cartilagem.
Se o FGFR3 está trabalhando muito, como na acondroplasia, poucos condrócitos atingem
o estágio maduro e menos osso é formado. Esta é certamente uma das principais
características da acondroplasia.
A cascata do CNP bloqueia a atividade
das enzimas MAPK no nível de uma chamada de Raf
e, portanto, reduz a influência negativa do FGFR3 na transição dos condrócitos para
a fase de hipertrofia. Com mais condrócitos proliferando e atingindo a fase
hipertrófica, mais osso é produzido.
Resumindo
O estudo da Biomarin mostra que, com o tratamento
com o análogo do CNP BMN-111, camundongos portadores de uma mutação no FGFR3
que produz, nos animais afetados, características semelhantes as que vemos na
acondroplasia, tiveram seu crescimento ósseo significativamente resgatado,
apesar de que o resgate não foi completo. Os ratos tratados tiveram ossos dos
membros mais longos e retos, ossos da coluna vertebral mais largos e melhor
desenvolvimento dos ossos cranianos e do terço médio da face. Os estudos
microscópicos revelaram que a placa de crescimento nos animais tratados era
maior do que nos não-tratados, e que se assemelharam à placa de crescimento de
animais normais (mas não completamente iguais). Estes resultados podem ser
vistos como uma prova de conceito de que o CNP é uma estratégia válida para
resgatar o crescimento ósseo em indivíduos portadores de mutações ativadoras no
gene FGFR3, tal como na acondroplasia e hipocondroplasia.
Pode-se pensar que um tratamento
direcionado para a forma mais comum de
nanismo parece ser somente de ordem estética. No entanto, pode-se antecipar
que, apesar de uma altura final melhor ser um resultado desejado, as outras muitas
melhorias que qualquer terapia dirigida contra o FGFR3 na acondroplasia podem
trazer também são tão desejadas quanto. Ao reduzir as frequentes complicações ortopédicas,
otorrinolaringológicas, neurológicas e sociopsicológicas, uma terapia eficaz
para a acondroplasia poderia reduzir a necessidade de atendimento médico ou
exposição à cirurgias difíceis, e ajudaria as amadas crianças afetadas a ter
uma infância mais saudável.