Pescando novas drogas
Atualmente, uma das estratégias mais utilizadas para
descobrir novas potenciais drogas é um chamado de high throughput screening (ou triagem
de alta capacidade em tradução livre; HTS; link em inglês). Esta é uma técnica pela qual o
investigador é capaz de testar milhares de compostos num curto período de
tempo, permitindo encontrar aqueles que têm melhor / mais afinidade com um alvo
específico. Em outras palavras, os pesquisadores pescam novas potenciais drogas
atraindo-as usando iscas específicas (por exemplo, pode ser o receptor de fator
de crescimento de fibroblastos tipo 3, FGFR3). Outra maneira de entender esta técnica
é pensar que é uma espécie de filtro. Você coloca o café em pó no filtro,
adiciona água quente e sua xícara será preenchida apenas com o líquido escuro,
rico e saboroso.
Muitas da nova geração de drogas anticâncer disponíveis hoje
foram descobertas usando HTS e os pesquisadores continuar a usar essa técnica
para descobrir mais. É assim que a nova droga potencial do título deste artigo
foi identificada. Vamos analisar brevemente como essa droga poderia apontar
para uma nova estratégia contra o FGFR3 mutante e ver se ela poderia ser usada na
acondroplasia.
Os inibidores da tirosina quinase (TKI) e como eles funcionam
Atualmente, muitos dos novos TKI utilizados no tratamento do
câncer, tais como o imatinib e o dovitinib (também conhecido como TKI-258, um pan-inibidor
de FGFR), funcionam pelo bloqueio de uma região específica dentro do domínio da
tirosina quinase da enzima receptora-alvo chamada de ATP pocket ou, literalmente, bolso de ATP.
Vamos traduzir esta frase cheia de jargão em algo compreensível.
Este artigo anterior do blog descreve o modo de ação dos TKI (e inclui um link
para uma animação que mostra como o funciona o TKI), mas, em resumo, estes
compostos inibidores são como uma capa de tomada elétrica (figura).
Quando um agente desses se liga ao bolso de ATP, impede o
carregamento elétrico da tirosina (um aminoácido, uma parte da estrutura da
enzima), o que por sua vez impede a ligação e a ativação de enzimas vizinhas.
Isso é o que chamamos de via ou cascata enzimática, onde uma enzima ativada
ativa a próxima e assim por diante, como em um efeito dominó (que analisamos
aqui). Quando você cobre a tomada ninguém pode ligar um liquidificador ou uma
cafeteira, pode?
As células cancerosas utilizam enzimas como o FGFR3 para
estimular o núcleo da célula para continuar a multiplicar-se. Estas enzimas desencadeiam
cascatas que aceleram duplicação celular (proliferação) e retardam o processo
de morte natural das células (apoptose). Então, é por isso que há tanto
investimento nesta área. Se você bloquear os estimuladores, o câncer perde a
capacidade de progredir e pode ser mais facilmente (se pudermos falar assim)
combatido.
Também mencionamos anteriormente em outros artigos do blog que as proteínas (enzimas) podem ter várias ações
distintas, dependendo da sua sequência de aminoácidos e da sua conformação
estrutural. Regiões como os bolsos de ATP são considerados sítios ativos
naturais da enzima. Drogas que atuam nesses sítios ativos são descritas como
tendo um modo ortostérico de ação (do
grego, que significa lugar certo, em tradução
livre). No entanto, nem todas as drogas agem diretamente por esta forma ortostérica
de ação. Elas também podem interferir na atividade da enzima em outros locais
ao longo da sua estrutura. Quando isso ocorre, os pesquisadores classificam
essas drogas como tendo um modo alostérico
de ação (do grego, que significa outro
lugar, em tradução livre; este link em inglês para a Wikipedia dá uma explicação
interessante sobre este tema). Neste contexto, como mencionado acima, TKIs
clássicos funcionam bloqueando os bolsos de ATP, sítios ativos naturais das
enzimas receptoras, de modo que têm um modo de ação ortostérico.
Você deve se lembrar de que os FGFRs são dividos em três partes,
também chamados de domínios:
- extracelular;
- transmembrana;
- intracelular (ou tirosina quinase)
E, finalmente, há o domínio intracelular, onde os bolsos de
ATP estão localizados, a parte responsável por ligar a cascata química que muitas
vezes mencionamos nos artigos deste blog. Assim, para um TKI clássico exercer a
sua ação, tem de entrar na célula.
Surpresas
Recentemente,
Bono F et al. C e Herbert et al. (1,2) publicaram um par de estudos em
que eles procuravam candidatos para potenciais novas drogas para bloquear receptores de tirosina quinase (RTK).
Surpreendentemente, durante as análises, eles descobriram que uma das
moléculas, embora não tivesse uma afinidade especial para o receptor (a isca,
lembre,eles estavam pescando), foi capaz de reduzir a atividade do receptor.
Ainda testando este composto, que eles chamaram de SSR128129E,
eles descobriram que ele funciona através da interação com o receptor fora da
célula, de forma alostérica. Estes dois padrões: trabalhar fora da célula e um
modo alostérico de ação fazem deste novo composto o primeiro representante de
uma nova classe de inibidores de enzimas receptoras, tal como interpretado em
uma nota editorial da revista Cancer
Discovery. (3)
No caso da SSR128129E, uma de suas características é que ela
não bloqueia a atividade do FGFR completamente, apenas a reduz, o que é uma
propriedade muito interessante. Devemos lembrar que tanto o excesso de
atividade quanto zero atividade de uma proteína podem causar problemas para o
adequado funcionamento de uma célula. No caso do FGFR3, a superatividade conduz
ao comprometimento do crescimento do osso (como visto na acondroplasia) e a
ausência de FGFR3 pode também trazer problemas de saúde em modelos animais e em
seres humanos. (4,5) Se pudéssemos reduzir significativamente a ação do FGFR3
hiperativo, isso poderia ser suficiente para resgatar o crescimento normal ou
quase normal do osso.
O segundo resultado positivo é sobre seu local de ação. Uma
vez que funciona fora da célula, ele não teria de atravessar a membrana
celular, uma das barreiras naturais para qualquer droga com alvo intracelular.
A terceira propriedade positiva é que ela parece ser muito
específica para FGFRs, não reagindo com os outros receptores da parede celular.
Isto é muito, muito importante, uma vez que um dos maiores desafios dos TKI
clássicos é que eles não são suficientemente específicos contra os FGFR (ou
particularmente FGFR3), para permitir a sua utilização na acondroplasia (como no
caso do TKI-258 e vários outros inibidores de FGFR disponíveis já revistos nos
artigos anteriores do blog).
Uma quarta informação positiva é que, tradicionalmente, os
inibidores (ou moduladores alostéricos, outra forma de nomeá-los) tendem a
produzir menos toxicidade do que os fármacos ortostéricos clássicos.
Direto ao ponto: essa é uma opção para acondroplasia?
Os investigadores estavam à procura de novos inibidores de
FGFRs e a molécula que eles descobriram é um pan-inibidor de FGFR. Isso
significa que, devido à forte homologia entre os receptores (eles são bastante
semelhantes em termos de estrutura), a droga funciona contra todos os quatro
FGFRs conhecidos. A partir de uma primeira análise, não seria adequado para a utilização
em corpos em crescimento, visto que esses, naturalmente, dependem de um adequado
funcionamento químico destes receptores. No entanto, antes de dizer não às
cegas, este poderia ser o caso de testá-lo em um modelo de cultura celular da acondroplasia.
Os investigadores do SSR128129E testaram em vários modelos de câncer e a
resposta foi positiva. Não importa se este composto em particular não possa ser
utilizado na acondroplasia, a descoberta desta nova classe de drogas abre uma
porta para explorar moléculas mais específicas, o que é uma interessante perspectiva.
Resumo
Foi descrito o primeiro composto de uma nova classe de inibidores de FGFR:
- funciona fora da célula em todas as quatro FGFR, de uma forma alostérica;
- não bloqueia completamente a atividade dos FGFRs
- ele funciona em células de câncer que apresentam superexpressão ou superatividade de FGFRs.
Novidade
Dias atrás, outro estudo lidando com uma estratégia que já
discutimos aqui testou, com sucesso, seu uso contra outra enzima receptora.
Vamos explorar este estudo no próximo artigo, tendo sempre em mente possíveis
correlações com o FGFR3 e a acondroplasia.
Referências
1. Bono F et al. Inhibition of tumor angiogenesis and growth by a small-molecule multi-FGF Receptor blocker with allosteric properties. Cancer Cell 2013;23:477–88.
2. Herbert C et al. Molecular mechanism of SSR128129E, an extracellularly acting, small-molecule, allosteric inhibitor of FGF receptor signaling. Cancer Cell 2013;23:489-501.
3. Research Watch: Targeted therapy. A first-in-class FGFR Inhibitor suppresses tumor growth Cancer Discovery. Published online first April 25, 2013; doi:10.1158/2159-8290.CD-RW2013-088.
4. Colvin JS et al. Skeletal overgrowth and deafness in mice lacking fibroblast growth factor receptor 3. Nature Genetics 1996;12:390-7. doi:10.1038/ng0496-390.
5. Toydemir RM et al. A novel mutation in FGFR3 causes camptodactyly, tall stature, and hearing loss (CATSHL) syndrome. Am J Human Genet 2006;79(5):935–41.
2. Herbert C et al. Molecular mechanism of SSR128129E, an extracellularly acting, small-molecule, allosteric inhibitor of FGF receptor signaling. Cancer Cell 2013;23:489-501.
3. Research Watch: Targeted therapy. A first-in-class FGFR Inhibitor suppresses tumor growth Cancer Discovery. Published online first April 25, 2013; doi:10.1158/2159-8290.CD-RW2013-088.
4. Colvin JS et al. Skeletal overgrowth and deafness in mice lacking fibroblast growth factor receptor 3. Nature Genetics 1996;12:390-7. doi:10.1038/ng0496-390.
5. Toydemir RM et al. A novel mutation in FGFR3 causes camptodactyly, tall stature, and hearing loss (CATSHL) syndrome. Am J Human Genet 2006;79(5):935–41.
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