Em 18 de setembro foi publicado um estudo muito interessante que descreve mais uma estratégia terapêutica para a acondroplasia. O estudo realizado pelo grupo francês liderado pela Dra. Elvire Gouze (1) representa uma nova abordagem de tratamento e nós vamos conversar um pouco sobre ela aqui.
No entanto, a fim de facilitar nossa compreensão sobre como funciona essa nova terapia potencial, acho que vale fazer um pequeno passeio pelo mecanismo causador da acondroplasia. Há outros artigos neste blog que reveem esse tema, mas sempre busco introduzir novos detalhes ou informações, de modo que continuamos a aumentar o nosso conhecimento.
Um pouco sobre o mecanismo molecular de acondroplasia
A acondroplasia é causada por uma troca única (mutação) na sequência do gene FGFR3, que gera a proteína conhecida como receptor de fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3).
O FGFR3 é o que chamamos de tirosina quinase receptora (uma enzima). Ele é chamado de receptor porque está fixado através da membrana celular dos condrócitos, à "espera" dos estímulos apropriados provenientes do exterior da célula (figura 1). Em outras palavras, como um receptor, o FGFR3 "recebe" sinais do corpo, tal qual uma antena, e redireciona esses sinais para o interior da célula.
Os receptores são bastante específicos e apenas respondem a certos transmissores. No caso do FGFR3, apenas algumas moléculas chamadas fatores de crescimento de fibroblastos (FGFs) serão capazes de ligar a antena. De fato, trabalhos anteriores descobriram que o FGFR3 tem alguns clientes "preferenciais" (ou, como chamam os pesquisadores, ligantes). De uma família de 23 FGFs, parece que o FGF9 (2) e o FGF18 (3) são os principais ligantes que ativam a antena FGFR3.
Figura 1. O FGFR3 está localizado através da membrana celular pronto para receber sinais de FGFs.
A ativação do FGFR3 começa quando dois FGF se ligam a dois receptores. Com o auxílio de moléculas semelhantes à heparina, presentes nas proximidades, chamadas HSPG (do inglês heparan sulphate proteoglycans), o complexo formado pelos dois FGFR3s e os dois FGFs, chamado de dímero (Figura 2), produzirá um rearranjo da parte intracelular dos dois receptores, o que leva à transferência de alguns íons de fósforo (estou simplificando), com subsequente transferência de energia. Este é o início do que chamamos de cascata ou via de sinalização (Figura 3). Uma por uma, outras proteínas vizinhas serão atraídas e enviarão o sinal químico para as outras, até que este alcança o núcleo da célula (4).
Figura 2. O dímero FGF- FGFR (do site do Laboratório do Dr Moosa Mohammadi).
Em condições normais, o dímero não dura muito. Existem sistemas de detecção de moléculas ativadas para encaminhá-las para reciclagem ou desintegração. Eles funcionam como sistemas de controle para manter as reações químicas das células em equilíbrio.
Figura 3. A cascata de sinalização do FGFR3.
O FGFR3 e a acondroplasia
Os FGFRs são proteínas fundamentais durante o desenvolvimento do bebê no útero. Após o nascimento, no entanto, embora o FGFR3 continue a ser o produzido por vários tipos de células do corpo, parece que o principal papel deste receptor está na regulação do crescimento ósseo. Basicamente, o FGFR3 é produzido por condrócitos localizados em regiões muito especiais encontradas nas extremidades dos ossos longos e nos outros ossos do corpo, também, conhecidas como placas de crescimento.
Em condições normais, agindo em conjunto com várias outras proteínas e agentes, o FGFR3 controla como os condrócitos proliferam, amadurecem e dão espaço para o novo osso em formação. Neste complexo concerto o FGFR3 é um freio natural, reduzindo a capacidade de multipicar e amadurecer dos condrócitos.
No entanto, na acondroplasia a mutação G380R no FGFR3 faz o dímero ficar mais estável, ativo por períodos mais longos. Isso é suficiente para "sobrecarregar" o núcleo da célula com sinais que dizem: "pare, não se multiplique". Esta sinalização excessiva é a causa da interrupção do crescimento ósseo que observamos na acondroplasia.
Parar o receptor viciado em trabalho (workaholic)
Desde que o blog começou nós já analisamos uma série de estratégias possíveis para vencer o FGFR3 superativo. Você pode encontrar mais informações sobre elas seguindo os links fornecidos no topo desta página, de acordo com o seu idioma preferido. Podemos dizer que há um grande número de potenciais tratamentos à disposição, aguardando investimento. O estudo realizado por Garcia et al. é apenas a mais recente publicado. Vamos rever os pontos principais deste estudo.
Capturando fatores de crescimento de fibroblastos (FGF)
O conceito trazido pela Dr. Gouse e seu grupo é que se criamos uma forma livre do FGFR3 disponível para conectar com seus ligantes, menos desses ligantes conseguiriam ligar-se ao FGFR3 fixo (o FGFR3 localizado na membrana do condrócito) para gerar a cascata de sinalização do FGFR3. Pelo contrário, uma vez que o FGFR3 livre não está ligado a outras proteínas intracelulares que respondem a sua ativação, o sinal não é transmitido. Se o sinal não é transmitido, então os efeitos negativos do FGFR3 sobre o crescimento dos condrócitos da placa cessam e as células podem se multiplicar livremente, restaurando o ritmo de crescimento.
Conversamos sobre uma estratégia similar há alguns meses neste artigo, em que os pesquisadores criaram uma molécula que é formada por em parte pelo FGFR1 e e pela estrutura básica de um anticorpo, o GSK3052230 (também conhecido como FP -1039), que tem sido explorada em vários modelos de câncer nos quais os FGFRs são agentes importantes. Este composto foi capaz de impedir que as células cancerosas pudessem se aproveitar da ativação de FGFRs. ( 5) É relevante saber que os estudos com este composto mostraram que os ligantes com maior suscetibilidade foram exatamente o FGF9 e o FGF18.
No estudo realizado por Garcia e colaboradores, eles trabalharam com uma cópia solúvel do FGFR3 humano (sFGFR3), injetada duas vezes por semana em animais jovens em crescimento portadores da mesma mutação G380R no FGFR3, tendo assim padrões acondroplásicos semelhantes (como ossos longos curtos, crânio arredondado, estenose espinhal etc.).
Eles observaram respostas marcantes em todos os parâmetros medidos. A duração do tratamento foi de três semanas, e os animais expostos ao sFGFR3 pareciam apresentar uma recuperação completa do crescimento (pelo menos nos que foram tratados com a maior dose testada) (Figura 4).
Figura 4. Ratos portadores do FGFR3 G380R + tratados e não tratados.
do artigo de Mitch Leslie, da Science Now |
Eles também procuraram evidências de que o sFGFR3 alcança a placa de crescimento (lembre-se que as placas de crescimento são tidas como uma barreira difícil para grandes moléculas) e foram capazes de detectar o sFGFR3 dentro da placa de crescimento.
Eles também verificaram se os ligantes esperados (FGF9 e FGF18 ) realmente se ligavam ao sFGFR3 e confirmaram que estes ligantes foram capturados pelo composto experimental. Além disso, eles também confirmaram o tipo de efeito exercido por sFGFR3 mostrando que a cascata clássica do FGFR3 que se considera ser a responsável pelos seus efeitos nos condrócitos foi inibida quando as células testadas foram expostas ao sFGFR3 e aos seus ligantes preferenciais.
Finalmente, os pesquisadores também examinaram vários órgãos e tecidos dos animais testados e não encontraram sinais de toxicidade.
Perguntas
Os resultados do estudo são atraentes, apresentando um composto que parece ser eficaz e seguro ao mesmo tempo. É razoável dizer que os pesquisadores foram bem sucedidos no estabelecimento da prova de conceito (proof of concept) de que seu composto funciona. No entanto, não poderíamos deixar de notar alguns aspectos.
Eles testaram duas doses diferentes em seus animais (0.25mg/kg e 2.5mg/kg). Quando verificamos as imagens dos animais presentes no corpo do artigo, podemos ver que os animais tratados com a dose menor não atingiram o mesmo tamanho do animal controle. Por outro lado, o animal afetado tratado com a dose maior cresceu mais do que o controle não tratado (Figura 2 no artigo completo). Além disso, o animal afetado tratado apresentou uma espinha mais translúcida do que o animal controle tratado, em um padrão que me lembrou o observado nos animais testados o CNP contínuo dos trabalhos de Yasoda e colaboradores. (6)
Para respeitar os direitos autorais de imagens - Eu só posto imagens aqui que já estão disponíveis na web, e sempre citando a fonte - não posso postar a fotografia do rato japonês aqui, mas convido você a abrir a referência 6 e conferir a imagem fornecida no artigo. Em seguida, compare os dois animais tratados no estudo de Garcia e colaboradores (o animal B da figura 4 serve para comparar). É possível que, dependendo da dose utilizada, o tratamento com o sFGFR3 poderia levar ao crescimento excessivo de animais afetados, da mesma maneira que a carga contínua de CNP parece fazer, pelo menos nos modelos testados.
Embora os pesquisadores tenham demonstrado evidências de que o sFGFR3 funciona como armadilha para o FGF9 e o FGF18, isso ainda precisa ser melhor investigado. Uma vez que a interação entre o FGF, o FGFR3 e o HSPG necessita que todos estejam na mesma área, é importante entender o mecanismo exato como o sFGFR3 está funcionando. Quando os primeiros testes com o GSK3052230/FP-1039 foram divulgados, o Dr Moosa Mohammadi, um especialista no campo das interações moleculares entre FGFs e FGFRs, mencionou que a captura de ligantes poderia não ser a razão do modo de ação desse composto, mas que ele poderia estar competindo com o receptor natural pela interação com os HSPG. (7) o mesmo pode estar acontecendo com sFGFR3. No entanto, essa dúvida não tira o mérito deste composto.
E, pensando um pouco mais além, o estudo de Garcia e colaboradores também fornece mais provas de que parece que os estudos anteriores que concluíram que a placa de crescimento seria uma barreira intransponível para moléculas grandes podem ter se perdido em alguns aspectos da biologia desta estrutura. Analisamos este tema neste artigo anterior do blog, mas há outras evidências recentemente publicadas que mostram que moléculas maiores podem atingir os condrócitos no interior da placa de crescimento (8; comentado aqui). Boa oportunidade para começar a rever esses conceitos.
Conclusão
Creio que os pesquisadores apresentaram uma interessante potencial opção terapêutica para tratar a acondroplasia. Há ainda a necessidade de descobri qual é a dose certa para ser testada, como a droga afetará animais maiores e como o corpo lida com ela (como o sFGFR3 é metabolizado e eliminado), juntamente com a realização de testes adequados de segurança antes de se pensar em testes em seres humanos. Alguns destes testes precisam ter o interesse de empresas de biotecnologia ou indústrias farmacêuticas para serem realizados. Neste aspecto, o outro composto que utiliza o conceito de captura de ligantes, o GSK3052230/FP-1039, tem uma bela vantagem: já está em fase 1. ( 9)
Você pode se interessar em ler o artigo publicado pela Science Now, de autoria de Mitch Leslie (em inglês), que é a fonte da figura 4 deste artigo, e que proporciona uma boa cobertura da pesquisa com o sFGFR3, incluindo a opinião de pesquisadores importantes no campo, tais como o Dr. William Horton.
Para concluir, uma diligente mãe de uma criança com acondroplasia (autora do blog Beyond Achondroplasia) encontrou outro projeto que explora uma forma distinta de FGFR3 solúvel, este em desenvolvimento nos EUA, financiado pelo NIH. Você pode encontrar mais informações aqui (em inglês). (10) Não há resultados publicados ainda, mas o investigador descreve que os testes já realizados também mostraram restauração do crescimento ósseo no modelo animal.
Referências
1. Garcia S et al. Postnatal soluble FGFR3 therapy rescues achondroplasia symptoms and restores bone growth in mice. Sci Transl Med 2013;5:203ra124.
2. Garofalo S et al.Skeletal dysplasia and defective chondrocyte differentiation by targeted overexpression of fibroblast growth factor 9 in transgenic mice. J Bone Miner Res 1999; 14 (11): 1909-15. Acesso livre (em inglês).
3. Davidson D et al. Fibroblast growth factor (FGF) 18 signals through FGF Receptor 3 to promote chondrogenesis. J Biol Chem 2005; 280: 20509-15. Acesso livre (em inglês).
4. Horton W. Molecular pathogenesis of achondroplasia. GGH 2006; 22 (4): 49-54. Acesso livre (em inglês).
5. Harding TC et al. Blockade of Nonhormonal Fibroblast Growth Factors by FP-1039 Inhibits Growth of Multiple Types of Cancer. Sci Transl Med 2013;5:178ra39.
6. Yasoda A and Nakao K. Translational research of C-type natriuretic peptide (CNP) into skeletal dysplasias. Endocrine J 2010; 57 (8): 659- 66. Acesso livre (em inglês).
9. Tolcher A et al. Preliminary results of a dose escalation study of the fibroblast growth factor(FGF) “trap” FP-1039 (FGFR1:Fc) in patients with advanced malignancies. 22nd EORTC-NCI-ACR symposium on molecular targets and cancer therapeutics, November 16-19, 2010. Berlin, Germany. Acesso livre (em inglês).
10. Ghivizzani SC. Delivery of soluble FGFR3 as a treatment for achondroplasia. National Institute of Arthritis and Musculoskeletal and Skin Diseases. 2013; Project Number: 5R01AR057422-04.
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