Saturday, March 15, 2014

Tratando a acondroplasia: NC-2, um novo análogo do CNP

Introdução

Muitos temas que revemos aqui são bastante técnicos. Para torná-los mais acessíveis a mais leitores (bom, espero que algum dia haverá mais que dezessete), costumo introduzir o tema em partes, para dar uma base apropriada e, em seguida, ir ao assunto principal daquele artigo em particular. Neste, pensei que seria bom retornar a um dos mecanismos mais importantes pelos quais o receptor do fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3) utiliza para exercer seus efeitos na placa de crescimento,
cascata enzimática da proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK).

Um aspecto relevante de moléculas como o NC- 2 é o seu tamanho e, como esta é uma propriedade fundamental para qualquer tratamento potencial que vise alcançar os condrócitos na placa de crescimento, vamos também revisitar brevemente a placa de crescimento.


As RASopatias

As RASopatias são uma família de doenças genéticas que compartilham uma característica comum: todas elas são causadas ​​por distúrbios
na via de sinalização da MAPK, associados a mutações nas proteínas desta cascata de sinalização ou em proteínas que regulam a sua atividade (Figura 1). Qualquer que seja a localização da mutação, isto conduz à excessiva sinalização da MAPK, o que por sua vez é a causa dos diferentes aspectos clínicos das várias síndromes associadas.(1)

Figura 1. 
Um esboço da via de sinalização RAS- MAKP. Síndromes causadas por mutações nos genes que controlam a produção de certas proteínas de sinalização. De Socialstyrelsen.se.

Para mais informações sobre a via MAPK, leia o último artigo publicado no blog. O blog também tem uma série de artigos anteriores falando sobre a cascata da MAPK, acessíveis através da página de índice do seu idioma preferencial (link localizado no topo desta página).

A sinalização da MAPK reduz o crescimento ósseo

Uma característica comum dos indivíduos com RASopatias é a baixa estatura. Como a MAPK é fundamental para o desenvolvimento da placa de crescimento (2), é razoável pensar que a atividade excessiva da MAPK encontrada nas RASopatias também influencia os condrócitos na placa de crescimento dos indivíduos afetados. No entanto, há pouca informação específica sobre as consequências da sinalização excessiva
da MAPK nos ossos, no contexto deste grupo de doenças.

É por isso que, com o objetivo de entender o mecanismo da baixa estatura em uma dos RASopatias, a neurofibromatose tipo 1, em abril de 2013 o grupo do Dr. Florent Elefteriou publicou um
elegante estudo em que eles exploraram os papéis da via MAPK nos condrócitos da placa de crescimento em um modelo animal onde eles "desligaram" a neurofibromina nessas células.(3)

Na época, revimos esse estudo em um outro artigo, mas estou retornando a ele para falar mais sobre o NC- 2, o análogo do peptídeo natriurético tipo C (CNP) usado nesse trabalho. Depois de buscar por um bom tempo, finalmente encontrei a patente com a descrição do NC- 2 e os muitos resultados dos testes já realizados com este composto. A patente indica que o NC-2 poderia ser utilizado para tratar a acondroplasia.(4)


Além disso, o NC - 2 parece estar agora sob desenvolvimento pela Alexion, uma conhecida empresa de biotecnologia, o que aumenta a probabilidade de que poderia progredir para estudos clínicos. No entanto, antes de falar sobre a patente, vamos começar do básico, falando um pouco sobre o estudo realizado por Ono et al., a neurofibromina, o FGFR3 e o CNP.

A neurofibromina e o CNP na placa de crescimento

A neurofibromina funciona através da inativação da proteína RAS no topo da cascata de MAPK (Figura 2). Ono et al. desenvolveram um modelo de camundongo no qual a neurofibromina estava ausente nas placas de crescimento. Os animais afetados apresentaram padrão semelhante ao que é encontrado em displasias relacionadas com o FGFR3, incluindo os ossos curtos e placas de crescimento mais estreitas, com as zonas proliferativa e hipertrófica menores. A ausência da neurofibromina permitiu que a enzima RAS ficasse mais tempo ativa, mantendo assim toda a MAPK mais ativa do que o normal, em um mecanismo parecido com o que acontece na acondroplasia.

Figura 2 .
Interações entre as enzimas receptoras, a via RAS-MAPK e a neurofibromina

A função de neurofibromina na via RAS-MAPK. A ligação de fatores de crescimento com enzimas receptoras (RTK) resulta em dimerização e auto-fosforilação. A Grb2, uma proteína adaptadora, se liga ao receptor, e forma um complexo com a SOS, estimulando a troca de GDP para GTP na RAS. A neurofibromina tem atividade RAS-GTPase e inativa a RAS. A RAS ligada a GTP ativa a RAF, levando a fosforilação e ativação da MEK e da ERK, uma quinase regulada por sinal extracelular que pode entrar no núcleo e fosforilar fatores de transcrição. A RAS também ativa a PI3K, a AKT e a mTOR. RTKs = tirosina quinase receptora. P = fosforilação. Grb2 = proteína associada a receptor de fator de crescimento 2. SOS = homólogo  mamífero do Son of Sevenless da Drosophila . RAS = homológo do oncogene viral do sarcoma do rato. GD = difosfato de guanosina. GTP = trifosfato de guanosina. RAF = homólogo do oncogene viral do sarcoma murino. MEK = MAPK-ERK quinase. PI3K = fosfatidilinositol-3-quinase. AKT= V-Akt homólogo do oncogene viral do timoma murino 1. mTOR = alvo da rapamicina em mamíferos.NA: No contexto dos condrócitos, pense em fatores de crescimento como os FGF e a RTK como o FGFR3. De: H Brems et al. Lancet Oncol 2009; 10(5):508-15. Aviso: esta figura está disponível gratuitamente através do Google Images e foi reproduzida aqui apenas para fim de informação.
NC- 2 resgata o retardo de crescimento causado pela ausência de neurofibromina

Ono et al. administraram NC-2 a animais com
condrócitos sem neurofibromina e verificaram que este análogo do CNP foi capaz de resgatar o crescimento dessas células nos animais expostos, compensando os efeitos da falta de neurofibromina. Um mérito deste estudo é que ele demonstrou claramente o tipo de consequências que defeitos na neurofibromina podem causar à placa de crescimento e também conhecimento para gerar novas estratégias terapêuticas para tratar as RASopatias e as displasias relacionadas com o FGFR3. Pense em uma molécula que pudesse interagir com a RAS, da mesma forma que a neurofibromina faz ...

CNP em condrócitos

Os pesquisadores descobriram que a sinalização do CNP atua diretamente na proteína RAF da cascata MAPK, reduzindo sua atividade. Como a MAPK é considerada um fator-chave da sinalização do FGFR3 em condrócitos, entende-se que o CNP é um modulador desse receptor. (Figura 3).(5) Em outras palavras, enquanto o FGFR3 influencia negativamente o crescimento do osso, o CNP tem um efeito positivo.

Figura 3 . Interação das vias do FGFR3 e do CNP



NC-2, um novo análogo do CNP

No estudo realizado por Ono e colaboradores, o NC-2 é descrito como uma molécula formada pela fusão de uma forma ativa do CNP, chamada CNP 22, com a parte Fc de uma imunoglobulina (anticorpo). Vamos fazer uma parada aqui para explicar brevemente o que é o fragmento Fc de um anticorpo.

As imunoglobulinas são proteínas criadas pelo sistema de defesa do corpo (o sistema imunológico) para combater moléculas
ou formas de vida estranhas ao corpo (vírus etc.). Basicamente, elas são compostas de duas partes: a) a parte Fc é comum a todas as imunoglobulinas, como uma espécie de base, e b) a parte Fab, a qual é montada pelas células do sistema imune especificamente para atacar um determinado alvo (Figura 4). Ambas as partes são integradas para se tornarem um anticorpo ativo. A parte Fc de um anticorpo pode ser ligada a outras moléculas para aumentar a sua meia-vida, capacidade de transporte e direcionamento ao alvo. Existem vários exemplos disponíveis, tais como uma molécula que funde o fragmento Fc ao interferon.(6)

Figura 4 . Uma simples representação de uma imunoglobulina



De acordo com a literatura, os fragmentos Fc geralmente têm um peso molecular de cerca de 50 quilodaltons (kDa). Este tamanho pode representar um problema para o NC-2, no contexto da placa de crescimento. Vamos ver o porquê.

A
cartilagem da placa de crescimento como uma barreira

A placa de crescimento é um tecido denso, também chamado de matriz extracelular, onde os condrócitos são rodeados por proteínas da família do colágeno e de outras moléculas grandes. A matriz não só é densa, mas também carregada eletricamente e não recebe fluxo de sangue direto de maneira uniforme. Essas características funcionam como barreiras químicas e físicas a
o tráfego para grandes moléculas. Isto é provavelmente como um mecanismo de defesa evolutivo muito antigo no organismo em crescimento: o núcleo da máquina de crescimento do osso teve de ser muito bem protegido contra invasores, sob o risco de o programa do crescimento ser perturbado. Por outro lado, a redução da entrada de uma parte dos agentes de corpo pode também contribuir para modular a taxa de crescimento. A maioria dos agentes do corpo com funções de desenvolvimento são agentes positivos para o crescimento, como os hormônios da hipófise.

Alguns investigadores estudaram como é o tráfego de moléculas no interior da placa de crescimento e demostraram que é provável que moléculas com 40 kDa ou menos teriam passagem livre no interior da cartilagem.(7,8)

Esses achados poderiam explicar porque o PRO-001, o primeiro anticorpo anti-FGFR3 específico nunca progrediu para o desenvolvimento clínico para a acondroplasia. O PRO-001 foi desenvolvido pelo grupo do Dr. Avner Yayon (9) mais de uma década atrás, e mostrou resultados promissores nos primeiros testes, mas podemos presumir que não foi bem sucedido devido a seu grande tamanho: um anticorpo típico pesa cerca de 150 kDa.

Por outro lado, vimos acima que a placa de crescimento foi sempre descrita como um ambiente avascular (sem circulação de sangue), mas há evidências de que este conceito pode ser apenas parcialmente correto.(10)

Além disso, tendo em vista as propriedades naturais da placa de crescimento, como podemos interpretar os resultados a partir do estudo por Ono et aL. e os do grupo do Dr. Gouze (11), recentemente comentado aqui ? Em ambos os casos, as moléculas pesam mais do que o limite de 40 kDa, e ainda assim, exerceram os efeitos esperados na placa de crescimento.

Pode-se especular que, nestes casos, os investigadores realizaram os testes utilizando certas doses de seus compostos para obter os resultados desejados, e que seriam demasiado altas para ser usadas com segurança em pacientes humanos. No entanto , conforme informado pelo grupo do Dr. Gouze, testes toxicológicos foram realizados nos animais expostos e nada de preocupante foi encontrado.(11)

Parece que ainda temos de aprender mais sobre as propriedades da placa de crescimento.

Conclusão

O NC-2 é uma molécula muito interessante. Não sabemos hoje se ele ainda está sendo avaliada como um candidato em potencial para o desenvolvimento clínico pela Alexion. Como é incomum que uma empresa que está desenvolvendo uma nova droga compartilhe um forte candidato a desenvolvimento clínico com pesquisadores externos que trabalham de forma independente, o fato do NC-2 ter sido usado assim pode implicar que este análogo do CNP poderia ter sido abandonado. Mesmo se for este o caso, o conceito ainda é atraente e mostra como os pesquisadores podem ser criativos à procura de soluções inteligentes para combater condições clínicas com claras necessidades médicas não atendidas.

Se você estiver interessado em saber mais sobre CNP e a placa de crescimento, basta visitar estes artigos anteriores do blog:


A última fortaleza: a cartilagem da placa de crescimento


Referências

1.Tidyman WE and Rauen KA. The RASopathies: Developmental syndromes of Ras/MAPK pathway dysregulation. Curr Opin Genet Dev 2009; 19(3): 230–36. Acesso livre.
 
2. Foldynova-Trantirkova S et al. Sixteen years and counting: the current understanding of fibroblast growth factor receptor 3 (FGFR3) signaling in skeletal dysplasias. Hum Mutat 2012; 33:29–41.
Acesso livre.
 
3. Ono K et al. The ras-GTPase activity of neurofibromin restrains ERK-dependent FGFR signaling during endochondral bone formation. Hum Mol Genet 2013;22(15):3048-62.
 

4. Alexion Pharma International. Compositions comprising natriuretic peptides and methods of use thereof. Patent US 20120164142 A1. Jun, 28th 2012.  Acesso livre.

5. Krejci P et al. Interaction of fibroblast growth factor and C-natriuretic peptide signaling in regulation of chondrocyte proliferation and extracellular matrix homeostasis. J Cell Sci 2006; 118: 5089-00.
Acesso livre.
 
6. Jones TD et al. The development of a modified human IFN-alpha2b linked to the Fc portion of human IgG1 as a novel potential therapeutic for the treatment of hepatitis C virus infection. J Interferon Cytokine Res 2004;24(9):560-72.
 
7. Farnum CE et al. In vivo delivery of fluoresceinated dextrans to the murine growth plate: imaging of three vascular routes by multiphoton microscopy. Anat Rec A Discov Mol Cell Evol Biol 2006;288(1):91-103. Acesso livre.

8. Williams RM et al. Solute transport in growth plate cartilage: in vitro and in vivo.
Biophys J 2007;93(3):1039-50. Acesso livre.
 
9. Aviezer D et al. Fibroblast growth factor receptor-3 as a therapeutic target for Achondroplasia--genetic short limbed dwarfism. Curr Drug Targets 2003;4(5):353-65. 
 
10. Wirth T et al. The blood supply of the growth plate and the epiphysis: a comparative scanning electron microscopy and histological experimental study in growing sheep. Calcif Tissue Int 2002;70(4):312-9.
 
11. Garcia S et al. Postnatal soluble FGFR3 therapy rescues achondroplasia symptoms and restores bone growth in mice. Sci Transl Med 2013;5:203ra124.



1 comment:

  1. Dr. Morrys, como sempre ótimas suas explicações!!! parabéns!
    esperança- é o que temos que ter para a acondroplasia!! aguardando ansiosamente os primeiros resultados do BMN-111 - quando puder passe para nós a fala da Biomarin constante do site.
    Abraços- Maria Cecília p Lopes- Curitiba- vó da M.Fernanda- acondr.

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