Friday, December 5, 2014

Tratando a acondroplasia com estatinas

Introdução

Nature, uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo, publicou um convincente estudo realizado por um grupo japonês, no qual os investigadores investigam o uso de estatinas para o tratamento da acondroplasia. (1)

As estatinas são uma família de drogas amplamente utilizadas para baixar os níveis de colesterol no sangue, com o objetivo de reduzir o risco de um indivíduo ter um ataque cardíaco ou de ter outro ataque no futuro. No entanto, tem sido demonstrado que as estatinas têm vários outros efeitos terapêuticos potenciais numa série de diferentes situações, desde prevenção de fibrose excessiva em processos de cicatrização a efeitos positivos em modelos animais de doenças tais como a doença de Alzheimer. (2)

Também tem sido demonstrado que as estatinas parecem exercer para ação anti-proliferativa em modelos celulares de câncer, com alguns investigadores sugerindo que elas podem ser incluídas como "complementos" no tratamento de doenças malignas. (3)

No entanto, a razão pela qual o grupo japonês escolheu as estatinas para testar em seu modelo animal de receptor fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3) mutante / acondroplasia foi a constatação de que as estatinas têm demonstrado melhorar a osteoartrite, possivelmente por efeitos positivos em condrócitos articulares. (4)

No entanto, antes de conferir este interessante trabalho de Yamashita e colaboradores, em respeito aos eventuais novos leitores, vamos apontar alguns conceitos sobre o FGFR3 e seu modo de ação, de modo a tornar mais fácil entender o tema.

FGFR3 e proliferação celular

Se você já leu outros artigos publicados neste blog provavelmente sabe que o FGFR3 é um agente que geralmente promove o crescimento e proliferação celulares. A exceção relevante ocorre exatamente nos condrócitos situados na placa de crescimento, nos quais o FGFR3 funciona como um freio natural de crescimento. Na acondroplasia, o FGFR3, tem a sua estrutura alterada (mutada) e esta alteração o torna mais ativo do que o normal, aumentando assim a potência do freio. O resultado é bem conhecido: os ossos longos crescem significativamente menos do que o esperado e outras estruturas ósseas são afetadas também. É digno de nota que, independentemente da célula ou tecido, o FGFR3 utiliza as mesmos cascatas químicas de sinalização para exercer seus efeitos. A diferença não está no modo de ação do FGFR3, mas na célula na qual ele está trabalhando.

Poderíamos pensar em uma cascata ou via química de sinalização como uma cadeia de dominós (Figura 1).

Figura 1. Iniciando uma reação em cadeia.

O dedo (um FGF) derruba o primeiro bloco (o FGFR3) e em sequência, este derruba o segundo, que por sua vez faz o mesmo com o terceiro até o último da fila. A Figura 2 representa as principais cascatas químicas no interior das células que respondem à ativação do FGFR3. As letras que você vê na figura são siglas para várias proteínas reativas (ou enzimas) que interagem entre si para enviar o sinal para o núcleo da célula. Estas cascatas químicas são surpreendentes no sentido de que o que está acontecendo é simplesmente a transferência de cargas elétricas de uma molécula para outra. Como é que elas sabem o que fazer com eles é algo para se pensar (elas não têm GPS...). Você pode encontrar mais sobre esse assunto em outros artigos do blog.

Figura 2. As principais cascatas de sinalização do FGFR3 (MAPK, PI3K-AKT e JAK-STAT).



Como mencionado acima, em todas as células, quando o FGFR3 é ativado (ligado, ou eletricamente carregado) desencadeará as cascatas mostradas na Figura 2, o que levará a carga elétrica para o núcleo da célula, que por sua vez vai responder com outras reações químicas, levando à multiplicação celular. A exceção são os condrócitos da placa de crescimento, em que o oposto acontece: quando o FGFR3 está ativado, o núcleo responde parando com a maquinaria de proliferação.

Agora, recomendo que você assista a esta rica animação (14 min, em inglês) criada pelo Cold Spring Harbor Laboratory, para ver como deve ser uma cascata de sinalização no nível molecular (vale assistir):


DNA Learning Center by Cold Spring Harbor Laboratory

O FGFR3 já é reconhecido como um dos agentes de crescimento utilizadas por alguns tipos de cÂncer para ajudar as células malignas a proliferar. Como notado acima, estas células tiram vantagem das vias químicas ativadas pelo FGFR3, tais como a cascata da proteína-quinase ativada por mitógeno (MAPK (RAS-RAF-MEK-ERK); Figura 2). (5)

Controlando a sinalização

O FGFR3 é apenas um dos muitos estimuladores de crescimento presentes na superfície da célula. Você deve se lembrar de um outro artigo do blog, o FGFR3 é como uma antena no teto da cela, esperando os sinais apropriados transportados por FGFs para transmitir a mensagem para o núcleo: "crescer". Há muitos outros gatilhos de crescimento e você pode imaginar o que aconteceria se todos eles estiverem trabalhando sem parar. Células e tecidos iriam crescer indefinidamente causando uma série de problemas. Grosseiramente falando, o câncer é isso, as células doentes perdem seus sistemas de controle, ou os desativa, e começam a proliferar à vontade.

Então, como é obtido este controle do crescimento na célula normal, impedindo que uma célula descarrilhe?

Do mesmo modo que existem muitos indutores de crescimento (pense em positivo), existem também inibidores de crescimento (o negativo), outras moléculas que o corpo produz para equilibrar a situação. Cada célula é preparada para interromper a atividade de uma enzima ativada através de alguns, digamos sistemas de faxina. Quando uma proteína como o FGFR3 é ativada, não só atrai o próximo na sua cascata química clássica (por exemplo: MAPK), mas também vai chamar a atenção de outras que existem para inibir sua atividade. Estes sistemas de compensação se ligam à molécula ativada e a inativam através da dispersão da carga elétrica (reciclagem) ou simplesmente a levando à desintegração.

Então, este parece ser o elo entre as estatinas e o FGFR3 vistos no interessante trabalho por Yamashita et al.: parece que as estatinas testadas foram capazes de facilitar o trabalho do sistema de limpeza do condrócito no FGFR3 ativado, causando a sua degradação mais rápida.

Bem, como isso poderia nos ajudar na acondroplasia? A mutação do FGFR3 que causa acondroplasia não só torna a enzima mais ativa, mas também a torna ativa por mais tempo. No estudo realizado por Yamashita et al., as estatinas foram capazes de atenuar os efeitos da mutação pelo FGFR3 levando à degradação por meio de um dos faxineiros celulares conhecidos como sistema proteassomal.

Estatinas sob os holofotes

O trabalho de Yamashita et al. tem pelo menos um grande avanço científico. Em vez de executar seus principais testes apenas em células animais, o que é mais fácil, eles usaram células-tronco humanas derivadas de tecidos de doadores portadores mutações da displasia tanatofórica tipo 1 (TD1) e da acondroplasia. Você deve se lembrar que existem outras mutações ativadoras identificadas no FGFR3 causando consequências clínicas mais ou menos graves. A TD1 é uma das síndromes mais graves ligadas à mutações do FGFR3.

Os pesquisadores também induziram células-tronco humanas normais a se comportar como condrócitos e em algumas delas eles implantaram um FGFR3 alterado, contendo a mutação da acondroplasia (as outras foram utilizadas como controle, para permitir comparações). Estas células apresentaram disfunções semelhantes às que vemos em condrócitos acondroplásicos reais. Quando expostos a estatinas estas células alteradas apresentaram melhora em suas atividades químicas e de crescimento, reagindo mais perto do que as células normais comparativas fizeram. O mesmo aconteceu com as células derivadas de TD1 e acondroplasia, que tiveram a sua disfunção melhorada ao serem expostas à estatina.

Os autores também testaram uma estatina, a rosuvastatina (RSV), em um modelo de rato de acondroplasia, e encontraram uma melhoria significativa no crescimento de alguns dos ossos mais afetados pela mutação (Figura 3).

Figura 3. Efeitos da exposição à rosuvastatina em ratos controle e com acondroplasia.


Nature 513,507-511 (25 de Setembro de 2014) doi:10.1038/nature13775. Reproduzido aqui apenas para fins educacionais.
Preste atenção aos gráficos. O valor P na direita descreve a significância das diferenças observadas com a exposição à droga. Neste artigo, um P menor que 0,05 foi considerado significativo, por isso os números com mais zeros significam que a droga fez diferença, em comparação com o animal afetado não exposto. Podemos ver que em todas as comparações, os animais afetados tratados com RSV cresceram mais do que os animais afetados não tratados (primeiro P). Também demonstra que não houve diferenças entre os animais do grupo controle expostos e não expostos (terceiro P). O segundo P representa a comparação entre os efeitos da exposição ao tratamento no animal com acondroplasia com o  animal controle não tratado. Algumas das comparações não foram significativas demonstrando que o comprimento dos ossos dos animais com a mutação tratados foi comparável ao comprimento dos ossos dos animais não tratados.

Estatinas para a acondroplasia?

Os autores acabaram por propor que as estatinas poderiam ser utilizados em terapia para acondroplasia, pendendo a identificação de qual estatina, ou estatinas, seriam mais adequadas para as crianças, e as doses certas também. Já estando no mercado há décadas, o perfil de segurança das estatinas é muito bem conhecido, embora dados sobre seu perfil de risco em crianças ainda são escassos. No estudo, os animais foram tratados com uma dose que é comparável com a maior dose utilizada na vida real para tratar níveis elevados de colesterol em seres humanos adultos e, com esta dose, o risco de toxicidade hepática, renal e muscular é mais elevado.

Neste contexto, existem algumas condições genéticas e inflamatórias, como o lúpus eritematoso sistêmico e a hipercolesterolemia familiar, que levam a níveis elevados de colesterol em crianças e, em consequência aumentam o risco de complicações cardiovasculares no início da vida. Estas condições têm sido tratadas com estatinas e para avaliar a segurança desta família de drogas nesses grupos, pesquisadores têm publicado uma série de estudos, revisões e metanálises. (6-8) Embora as doses utilizadas nestes estudos tenham sido menores do que as doses usadas por Yamashita e coaboradores em seu trabalho, os resultados de segurança relatados são tranquilizadores: até o momento relatos de eventos adversos graves têm sido raros na população de crianças tratadas com estatinas.

Prós e contras

Vamos ver o que outros especialistas na área têm comentado sobre o estudo por Yamashita et al. Na seção News and Views da mesma edição da Nature onde o trabalho do grupo japonês foi publicado, Olsen (9) comentou que os resultados apresentados podem levar a pensar sobre o uso de estatinas para tratar a acondroplasia, mas que isto deve ser tomado em consideração com cuidado extremo, para manter o nível adequado de colesterol em crianças que tomam estes medicamentos.

Em um artigo publicado na versão on-line do The Scientist, Yandell (10) entrevistou alguns dos especialistas na área. Um deles, Laurence Legeai-Mallet (Instituto INSERM, Paris), que participou em alguns dos estudos realizados com o BMN-111, o análogo do CNP agora em ensaios clínicos, observou que o efeito do crescimento ósseo não foi dramático, e que o modelo animal utilizado mostrava apenas um fenótipo leve (as características da acondroplasia). Dr Andrea Superti-Furga, da Universidade de Lausanne, uma das grandes autoridades mundiais em displasias esqueléticas, mencionou que o trabalho foi uma prova maravilhosa do conceito do uso de estatinas para o tratamento de acondroplasia, mas também levantou uma série de perguntas. Você pode descobrir mais sobre estes e outros cientistas no lado direito da página do blog, clicando em seus respectivos links.

Finalmente, parece que as estatinas podem ser utilizadas para tratar a acondroplasia, desde que os passos adequados sejam tomados antes, para compreender a forma como elas realmente funcionam na placa de crescimento, qual é a intensidade real do efeito e quais seriam as implicações para outros aspectos da saúde da criança com a sua utilização em grandes doses por um longo período de tempo. Por exemplo, reduzir muito os níveis de colesterol com uma estatina em uma criança poderia ser prejudicial para seu desenvolvimento.

Este não é o fim

Um grande aspecto do presente estudo é o resgate de uma antiga família de drogas para redirecioná-la para uma nova indicação clínica. O mesmo foi feito com a meclizina, um medicamento utilizado para enjoo de movimento, que demonstrou promover o crescimento dos ossos num modelo de acondroplasia em outro recente estudo publicado. (10)

Duas grandes vantagens principais destes medicamentos "antigos" são que os seus perfis de segurança são amplamente conhecidos, e seus custos são baixos. Isto, por sua vez, traz um outro desafio para a situação. Para realizar todas as investigações necessárias a fim de permitir que um medicamento seja prescrito comercialmente, o pesquisador deve realizar um enorme número de testes, desde verificar a reprodutibilidade dos resultados, à compreensão do mecanismo de ação, verificando a sua toxicidade até, mais importante, a realização de testes nos indivíduos afetados, para provar o conceito terapêutico. 

Este é um caminho muito caro a ser seguido e um enorme desafio a ser vencido quando não há nenhuma patente protegendo a droga e, consequentemente, o investimento necessário. Para uma doença comum estes desafios já seriam difíceis, mas para as doenças raras a barreira é realmente mais alta. Quem iria investir milhões para provar que um medicamento antigo e sem patente poderia tratar a acondroplasia ou condições raras semelhantes ? Para dar uma outra visão do tema, convido você a ler este pequeno artigo pelo Dr. Nicolas Sireau (em inglês), o presidente da Alkaptonuria Society, médico e pai de duas crianças com alcaptonúria, e um dos líderes mais combativos em favor das doenças raras (obrigado Inês, de Beyond Achondroplasia).

Por fim, enquanto um estudo recente realizado pela Tufts CSDD afirma que uma nova droga pode custar até US$ 2,6 bilhões, a organização Médicos Sem Fronteiras (Medecins Sans Frontiers) contesta estes números dizendo que uma droga poderia ser desenvolvida a custos muito mais baixos, digamos o valor de 4 ou 5 jogadores top de futebol na Europa.

Para pensar

Existem algumas dúvidas sobre a capacidade das estatinas de resgatar de forma significativa o crescimento ósseo na acondroplasia. Parece que uma alta dose seria necessária para ver resultados, o que traz o questões sobre os riscos. Mas, e se a dose necessária para promover a degradação do FGFR3 não fosse tão alta? Será que as estatinas poderiam ser combinadas com outras drogas, como a meclizina, considerada potencialmente terapêutica na acondroplasia, para resgatar o crescimento dos ossos? Com uma tal combinação, haveria um fármaco que inibe a cascata MAPK (meclizina), enquanto o outro acelera a degradação do FGFR3. Dois mecanismos de ação diferentes para reduzir a sinalização do FGFR3 para promover o crescimento ósseo. Isso também poderia permitir doses mais baixas de ambas as drogas? Para responder a todas estas e muitas outras perguntas, é preciso investigar primeiro.

Referências

1. Yamashita A et al. Statin treatment rescues FGFR3 skeletal dysplasia phenotypes. Nature (17 September 2014) | doi:10.1038/nature13775.

2. Barone E et al. Statins more than cholesterol lowering agents in Alzheimer disease: their pleiotropic functions as potential therapeutic targets. Biochem Pharmacol 2014; 88(4): 605-16.

3. Pisanti S et al. Novel prospects of statins as therapeutic agents in cancer. Pharmacol Res 2014 Oct;88:84-98. doi: 10.1016/j.phrs.2014.06.013. Epub 2014 Jul 5.

4. Yudoh K, Karasawa R. Statin prevents chondrocyte aging and degeneration of articular cartilage in osteoarthritis (OA). Aging (Albany NY). 2010 Dec;2(12):990-8. Free access.

5. Feng S et al. Fibroblast growth factor receptors: multifactorial contributors to tumor initiation and progression. Histol Histopathol (2014) 29: 000-000. Free access.

6. Schanberg LE et al. Use of atorvastatin in systemic lupus erythematosus in children and adolescents.Arthritis Rheum 2012;64(1):285-96. Free access.

7. Vuorio A et al. Statins for children with familial hypercholesterolemia. Cochrane Database Syst Rev. 2014 Jul 23;7:CD006401. Free access.


8. Kusters DM et al. Ten-year follow-up after initiation of statin therapy in children with familial hypercholesterolemia. JAMA. 2014;312(10):1055-7. 

9. Olsen BR. Disease models: Statins give bone growth a boost. Nature 2014; 513: 494–5.

10. Yandell K. Statins Stimulate Bone Growth? The Scientist 2014. Free access.

11. Matsushita M et al. Meclozine facilitates proliferation and differentiation of chondrocytes by attenuating abnormally activated FGFR3 signaling in achondroplasia. PLoS One 2013; 8(12):e81569. doi: 10.1371/journal.pone.0081569. Free access.

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