De acordo com a Biomarin, o laboratório que desenvolve o BMN-111, o estudo de fase 2 que está atualmente em curso com o primeiro grupo de crianças com acondroplasia terá os resultados publicados até o final do primeiro semestre de 2015, apenas três meses a partir de agora. Vale ressaltar duas outras novidades divulgadas pelo laboratório. A primeira é a atualização das informações sobre o estudo de fase 2 postadas no clinicaltrials.gov, que agora citam um estudo de extensão de longo prazo para as crianças que participam do estudo de fase 2. A segunda é a recentemente publicada história do desenvolvimento da BMN-111, que iremos rever aqui.
Um olhar sobre o crescimento ósseo
As cartilagens de crescimento (Figura 1) são faixas estreitas de cartilagem localizadas em ambas as extremidades dos ossos longos e são as estruturas responsáveis pela formação e crescimento dos ossos. A placa de crescimento é um tecido denso, eletricamente carregado, sem fornecimento de sangue direto, o que faz com que os nutrientes e todos os outros agentes sejam obrigados a trafegar em meio a uma formidável barreira química para alcançar os condrócitos, as células mestras do crescimento. Grandes moléculas não são bem-vindas lá.
Figura 1. A placa de crescimento da cartilagem
Dezenas de proteínas, enzimas, peptídeos, hormônios e outros fatores que desempenham papéis importantes na placa de crescimento atuam em conjunto para permitir um ritmo regular e organizado de crescimento ósseo, o qual vai durar até ao final da puberdade quando, em resposta a vários estímulos hormonais, as placas de crescimento se fundirão e os ossos pararão de crescer (figura 2). Estes agentes podem ter ações positivas e negativas que irão contrabalançar os efeitos umas das outras, a fim de permitir que os condrócitos se desenvolvam em um sistema bem organizado para produzir mais osso. Quando todos esses agentes trabalham em equilíbrio, é como uma maravilhosa sinfonia de Mozart.
Figura 2. O destino da placa de crescimento
Quando observamos a placa de crescimento por meio de um microscópio, o que se vê é que a própria placa de crescimento é dividida em um certo número de camadas ou zonas, cada uma delas com condrócitos em vários estágios de desenvolvimento (Figura 3).
Figura 3. Organização da placa de crescimento
Os condrócitos na zona de repouso (resting zone) apresentam poucos sinais de atividade. Respondendo àqueles vários estímulos, eles começam a multiplicar rapidamente (proliferam) e a organizarem-se em pilhas (zona proliferativa). Sempre agindo em resposta a esses agentes, eles param de proliferar e começam a aumentar de volume (zona hipertrófica) e, finalmente, eles são substituídos por osteoblastos (células formadoras de osso), quando a cartilagem começa a calcificar.
A acondroplasia e o bug na sinfonia
Vamos falar um pouco agora sobre os dois agentes que mais nos interessam nesta revisão.
FGFR3
Acondroplasia é causada por uma mutação no gene FGFR3, que codifica (ou carrega a informação para a produção de) a proteína ativa (ou enzima) denominada receptor do fator de crescimento de fibroblastos 3, ou FGFR3. Esta enzima está localizada atravessada na parede celular do condrócito e funciona como uma antena de TV, recebendo sinais do exterior da célula, neste caso, transmitidos por FGFs que se encontram presentes na vizinhança. Quando o FGFR3 recebe um sinal a partir de um FGF, torna-se ativado (ou ligado) e inicia uma reação química em cascata, com a ativação de uma proteína vizinha, que vai ativar uma outra e essa uma terceira e assim por diante, como numa cadeia de dominó (Figura 4). O sinal será levado até ao núcleo da célula e fará com que a célula responda adequadamente. Embora a maior parte dos agentes mencionados acima desempenhe papéis positivos no processo de crescimento do osso, o FGFR3 é um freio natural para o crescimento do osso. Se não houvesse FGFR3, os ossos provavelmente iriam crescer sem controle, causando gigantismo. De fato, a literatura descreve casos em que o FGFR3 está inativado, causando crescimento excessivo (1). Na acondroplasia, a mutação faz com que o FGFR3 seja mais ativo do que o normal ou, em outras palavras, o FGFR3 ativado envia excessivamente sinais para o núcleo da célula. Uma vez que o seu papel natural é de reduzir o ritmo de crescimento do osso, quando está hiperativo, provoca a interrupção do crescimento do osso (eis o bug na sinfonia). Agora, veja a Figura 4 e preste atenção na cascata à direita, que começa com RAS e continua com RAF, MEK e ERK. Estas enzimas formam a chamada via da proteína quinase ativada por mitógeno (mitogen activated protein quinase ou MAPK), que é da maior importância para nossa revisão.
Figura 4. As vias de sinalização do FGFR3
Peptídeo natriurético do tipo C (CNP)
O CNP é um peptídeo produzido naturalmente pelo nosso corpo, assim como sua outras duas principais moléculas irmãs, chamadas ANP e BNP. Os peptídeos natriuréticos já foram revistos em vários artigos do blog, e eu recomendaria este aqui para você ler primeiro. O CNP é produzido por vários tecidos do corpo, mas normalmente não circula no sangue, uma vez que é rapidamente inativado pelas enzimas circulantes. Um dos tecidos onde o CNP tem uma ação preponderante é exatamente a placa de crescimento cartilaginosa. O CNP é produzido na vizinhança dos condrócitos e estas células também produzem o receptor para o CNP, chamado de NPRB (receptor de peptídeo natriurético B) (Figura 5). Quando o CNP se liga ao seu receptor, isto também leva a uma reação química em cascata no interior da célula. O aspecto interessante da cascata do CNP é que ela "cruza" com a cascata MAPK ativada pelo FGFR3, inibindo-a (2). Ao inibir a cascata MAPK, o CNP age como um regulador do efeito do FGFR3 e por isso podemos dizer que eles têm papéis antagônicos na sinfonia do crescimento ósseo. Na verdade, existe uma grande quantidade de evidências de que o CNP tem um papel positivo no crescimento ósseo, fornecida tanto por relatos de casos em que o NPRB tem uma mutação hiperativa levando ao crescimento excessivo (3) ou o oposto, quando ele não está funcionando, causando uma displasia óssea que guarda semelhanças com a acondroplasia (4).
Figura 5. Os sinais do CNP inibem a via da MAPK nos condrócitos da placa de crescimento
CNP na acondroplasia
Um grupo japonês é responsável por muitas informações sobre a função biológica do CNP na placa de crescimento (5). O grupo liderado por Kazua Nakao desenvolveu uma estratégia em que eles foram capazes de gerar uma produção contínua de CNP em um modelo de rato com acondroplasia. Expostos a grandes volumes de CNP, esses animais não apenas resgataram o fenótipo da acondroplasia, como também mostraram sinais de crescimento excessivo (6). O grupo de Nakao nos mostrou que o CNP poderia ser uma solução para o tratamento de acondroplasia, mas o modelo que eles desenvolveram, em que se podia prever que o CNP teria que ser dado através de uma veia, de forma contínua, não soou prático e / ou viável.
Então, o que aconteceu depois? Vamos ver porque o CNP não pode ser utilizado, de forma prática, para tratar a acondroplasia e os novos desenvolvimentos desta convincente estratégia.
Desenvolvendo análogos do CNP
O CNP é uma molécula constituída de aminoácidos, como as proteínas, mas muito mais curta do que uma proteína típica. Proteínas e peptídeos são frequentemente ativos e provocam reações químicas, de modo que o corpo criou medidas para, em condições normais, controlar a quantidade e tempo que lhes é permitido causar reações químicas. O CNP é uma vítima natural de algumas enzimas que circulam no sangue chamadas de endopeptidases neutras (neutral endopeptidases). O CNP dura apenas dois minutos depois de uma injeção na veia, devido à ação destas enzimas. Ao contrário, o BNP, outro membro da família de peptídeos natriuréticos, tem uma resistência natural à degradação enzimática e circula por mais tempo (e por isso tem um papel relevante em algumas doenças cardíacas e tem sido intensamente explorado neste contexto). Pensa-se que esta resistência é resultado de sua "cauda" mais longa (Figura 6).
Figura 6. Principais peptídeos natriuréticos.
De http://www.heartfailure.com/ |
Por isso, um curso de ação para alguém pensando em oferecer o CNP para o tratamento de acondroplasia, é desenvolver soluções que permitam a molécula circular mais tempo. Uma maneira de fazer isso é torná-lo mais resistente à degradação enzimática. Essa foi a solução para a molécula chamada NC-2, feita da parte reativa do CNP fusionada à parte básica de um anticorpo (comentada aqui). Esta molécula foi descrita como tendo uma meia-vida de cerca de 20 horas (7), mas parece ter sido abandonada pelo desenvolvedor, possivelmente por ser demasiado grande para a placa de crescimento ou por causa de preocupações sobre segurança / toxicidade.
O BMN-111 é um CNP modificado que apresenta uma "cauda" prolongada e algumas modificações de aminoácidos que o tornaram mais resistente contra as peptidases (8). O resultado prático é que dura até 20 minutos no sangue, após uma injeção subcutânea. Então, vamos ver os testes de laboratório feitos com este análogo do CNP.
O desenvolvimento do BMN-111
O artigo publicado por Wendt et al. (8) descreve muitos dos estudos pré-clínicos (de laboratório) realizados com moléculas relacionadas ao CNP que acabaram por identificar o BMN-111 como o candidato para o desenvolvimento em ambiente clínico. Esta será uma breve visão geral desse artigo.
Em resumo, os pesquisadores aplicaram várias abordagens para alongar ou modificar a estrutura do CNP, sem alterar a sua parte ativa, para ver como as mudanças afetariam sua afinidade com as peptidases. Criaram vários análogos que eram mais resistentes à degradação e, em seguida, começaram a testar se eles seriam capazes de exercer efeitos nas células e na placa de crescimento. Apenas uma parte dessas moléculas mostrou efeitos positivos e continuaram a ser comparadas até os pesquisadores decidirem que apenas um pequeno número de moléculas, incluindo o BMN-111, tinham características adequadas para continuar o desenvolvimento.
Os pesquisadores então testaram estes análogos em ratos saudáveis para ver a extensão do seu efeito na placa de crescimento. Verificou-se que o BMN-111 era o análogo que causava mais efeito no crescimento. A seguir, eles testaram o BMN-111 em um modelo de rato com acondroplasia (fenótipo leve) e observaram que ao final do estudo houve restauração do comprimento dos ossos longos e da distância nasal-anal.
Em sequência, eles testaram o BMN-111 em macacos saudáveis e verificaram que ele tinha o esperado ligeiro efeito em parâmetros cardiovasculares. Também observaram que os animais tratados cresceram mais e mais rápido do que os animais do grupo controle. Testaram ainda a qualidade do osso dos animais tratados e viram que o novo osso formado tinha propriedades fisiológicas normais.
O estudo oferece muito mais detalhes sobre os testes realizados, mas a ideia aqui era lhe dar uma panorâmica de toda a história. Os resultados positivos acumulados verificados pelos pesquisadores, forneceram credenciais para que o BMN-111 pudesse ser testado no contexto clínico, após avaliação pela Food and Drug Administration (FDA).
Em um estudo separado, a Biomarin também testou o BMN-111 em um modelo muito mais grave de condrodisplasias relacionadas ao FGFR3, que se assemelha à displasia tanatofórica humana (9). Neste estudo, o BMN-111 foi capaz de restaurar parcialmente, mas de forma significativa, o crescimento dos ossos nos animais tratados, fornecendo mais evidências para o conceito de utilização do BMN-111 para o tratamento da acondroplasia.
Em 2012, com a aprovação da FDA, a Biomarin realizou um estudo de fase 1 em adultos saudáveis, especialmente para verificar os efeitos cardiovasculares do BMN-111 (NCT01590446). Em vários encontros públicos, a Biomarin informou que o estudo de fase 1 foi realizado sem surpresas, e que eles confirmaram os efeitos leves esperados do BMN-111 sobre a pressão arterial. Os resultados foram submetidos à FDA, que finalmente aprovou o estudo de fase 2 em crianças com acondroplasia (NCT02055157), que começou no início de 2014. Enquanto isso, para permitir comparações adequadas em alguns parâmetros-chave do crescimento, a Biomarin também iniciou um estudo observacional (um estudo sem intervenções farmacológicas), com crianças com acondroplasia, para aprender sobre o seu ritmo de crescimento natural (NCT01603095). A Biomarin já divulgou alguns dos achados clínicos deste estudo, em reuniões públicas (você pode acessar a última aqui, páginas 133 e 134).
Lendo a seção de critérios de inclusão para a participação no estudo de fase 2 no clinicaltrials.gov, aprendemos que a inscrição prévia neste estudo observacional é necessária para se tornar candidato. Isso é importante para permitir que os pesquisadores possam comparar a taxa de crescimento natural antes e após o início da terapia com o BMN-111 no estudo de fase 2.
O estudo de fase 2 com o BMN-111
Como disse no início deste artigo, a Biomarin tem declarado em encontros públicos que os resultados do estudo de fase 2 serão divulgados até o final do primeiro semestre de 2015. Nessas reuniões, o desenvolvedor tem também mencionado que eles estão trabalhando com a FDA, a fim de testar outra dose do BMN-111 no estudo de fase 2 (leia este pequeno artigo anterior do blog). Além disso, o laboratório atualizou recentemente as informações do estudo de fase 2 para incluir um estudo de extensão de longo prazo para essas crianças que participam do estudo. Estes são sinais que nos permitem sugerir que a droga não está mostrando problemas de segurança relevantes e que poderia estar exercendo os efeitos esperados no crescimento ósseo. Teremos de esperar para ver.
Próximo (possível) passo: o estudo de fase 3?
Partindo do princípio de que o estudo de fase 2 com o BMN-111 será bem sucedido, o natural próximo passo, depois dos resultados serem submetidos a FDA, é obter a aprovação para o estudo de fase 3. Um estudo de fase 3 é chave para qualquer composto em desenvolvimento se tornar um medicamento no futuro. Nesta fase, o medicamento será testado para confirmar sua segurança e eficácia em um número maior de voluntários da população afetada. Normalmente, no contexto das condições raras, um estudo de fase 3 exigirá não menos do que 100 voluntários. Pode-se prever que mais centros de pesquisa e, possivelmente, mais países seriam necessários para atingir o número de voluntários necessários para o estudo.
Dado o atual modelo exigido pela FDA para estudos de fase 3, há uma chance de que o estudo tenha um desenho com controle com placebo. Minha opinião pessoal é que esse tipo de desenho poderia ser questionado por razões éticas. Crianças têm um tempo limitado para crescer (é claro), então tê-las incluídas em um estudo com uma droga que já vem mostrando efeitos positivos no crescimento ósseo (novamente, assumindo que o estudo de fase 2 será bem sucedido) pode impor aos voluntários expostos ao placebo uma desvantagem que não poderá ser recuperada mais tarde.
Embora a resposta para a pergunta do estudo de fase 3 não seja conhecida desde o início: é esta droga segura e eficiente em uma amostra significativa da população afetada ?, em vez de comparar a droga candidata contra placebo, um desenho mais adequado seria o de usar o mesmo aplicado para o estudo de fase 2: comparar a taxa de crescimento individual após o início do tratamento com a registrada antes.
Quanto tempo deve durar um estudo de fase 3 com o BMN-111? Com base na experiência pré-clínica e no desenho do estudo de fase 2 publicado no clinicaltrials.gov, é provável que terá a duração de no mínimo 6 meses. Um estudo controlado com placebo mais longo poderia também ser eticamente questionado pela mesma razão exposta acima.
Bem, isso é apenas uma visão pessoal do que poderá acontecer adiante. Temos de aguardar os resultados do estudo de fase 2 e ver o que realmente acontece. Apenas mais três meses...
Referências
1. Makrythanasis P et al. A novel homozygous mutation in FGFR3 causes tall stature, severe lateral tibial deviation, scoliosis, hearing impairment, camptodactyly, and arachnodactyly. Hum Mutat 2014;35(8):959-63.
2. Yasoda A et al. Overexpression of CNP in chondrocytes rescues achondroplasia through a MAPK-dependent pathway.Nat Med 2004;10(1):80-6.
3. Miura K et al. An
overgrowth disorder associated with excessive production of cGMP due to
a gain-of-function mutation of the natriuretic peptide receptor 2 gene.
PLoS One 2012;7(8):e42180. doi:10.1371/journal.pone.0042180. Free access.
4. Olney RC et al. Heterozygous
mutations in natriuretic peptide receptor-B (NPR2) are associated with
short stature. J Clin Endocrinol Metab 2006;91(4):1229-32. Free access.
5. Yasoda A & Nakao K. Translational research of C-type natriuretic peptide (CNP) into skeletal dysplasias. Endocr J 2010;57(8):659-66. Free access.
6. Kake T et al. Chronically elevated plasma C-type natriuretic peptide level stimulates skeletal growth in transgenic mice. Am J Physiol Endocrinol Metab 2009;297(6):E1339-48. Free access.
8. Wendt DJ et al. Neutral endopeptidase-resistant C-type natriuretic Peptide variant represents a new therapeutic approach for treatment of fibroblast growth factor receptor 3-related dwarfism. J Pharmacol Exp Ther 2015;353(1):132-49. Free access.
9. Lorget F et al. Evaluation of the therapeutic potential of a CNP analog in a Fgfr3 mouse model recapitulating achondroplasia. Am J Hum Genet 2012;91(6):1108-14. Free access.