A acondroplasia é causada por uma mutação no gene que codifica a (contém a informação química para criar) a proteína chamada receptor de fator de crescimento de fibroblastos 3 (FGFR3). O FGFR3 é uma proteína que está ancorada através da membrana celular dos condrócitos (Figura 1). Ele tem três partes ou domínios: a parte fora da célula que funciona como uma antena, recebendo sinais dos FGFs; o domínio transmembrana, que "ancora" a proteína através da parede da célula; e o domínio intracelular, que é responsável pela propagação do sinal recebido fora da célula para outras proteínas dentro da célula.
Figura 1. Estrutura do FGFR3.
Proteínas são moléculas grandes e complexas constituídas por partes menores chamadas de aminoácidos. Estes aminoácidos são como peças de um modelo de Lego: cada um tem características distintas que, combinado com outros, conferem formas e propriedades especiais à proteína (Figura 2). A combinação certa de aminoácidos é, portanto, essencial para a função normal da proteína. Se você está curioso sobre aminoácidos, basta visitar a página Glossário do blog para algumas informações básicas ou ir a Wikipedia)
Figura 2. Combinando peças de Lego.
A combinação certa de aminoácidos em uma proteína é crucial para o seu funcionamento correto. Na acondroplasia uma única substituição (a mutação) de um destes aminoácidos deixa o FGFR3 mais ativo do que deveria. A função normal do FGFR3 é de reduzir a velocidade de crescimento do osso a partir de algumas estreitas estruturas localizadas nas extremidades dos ossos longos chamadas de placas de crescimento. Devido à mutação, o FGFR3 trabalha exageradamente e reduz significativamente a capacidade dos condrócitos que vivem nas placas de crescimento de multiplicar e amadurecer, o que conduz às características clínicas da acondroplasia.
Por que isto acontece?
Chamamos as proteínas que participam de reações químicas no corpo de enzimas. As enzimas são muito ativas e o FGFR3 não é diferente. Para controlar as atividades das enzimas, as células têm sistemas de "faxina" que permitem que essas enzimas, quando estão ligadas (ou ativadas), trabalhem somente por um período limitado de tempo. Na acondroplasia, a mutação faz o FGFR3 ficar mais estável e "resistente" a esses faxineiros, e por isso consegue se manter ativo por mais tempo.
Bem, o que isso tem a ver com o título deste artigo?
Espere mais um pouco, estamos chegando lá.
Uma enzima funciona através da transferência de cargas elétricas para outra proteína (um cliente, que pode ser outra enzima), provocando alterações no cliente. O cliente levará a carga elétrica para outro destino, por exemplo, uma outra proteína, um determinado local no interior do núcleo da célula, etc. Vai depender de sua(s) função(ões). Pense em uma cadeia de dominó, uma peça empurrando a próxima, etc. Esta é a forma como as células funcionam. Para ajudar você a entender reações químicas enzimáticas em cadeia ou cascatas de sinalização, convido você a assistir a animação logo abaixo, fornecida pelo Laboratório Cold Spring Harbor, que publiquei em um artigo anterior do blog (Animação 1).
Animação 1. Esta animação mostra como o corpo começa o processo de cicatrização após uma contusão na pele. A parte relevante começa aos 2:50 min, e mostra como um ligante (pense em um FGF) se junta a uma enzima receptora na superfície de uma célula (pense no FGFR3) e inicia a cascata de sinalização ou química.
DNA Learning Center. Cold Spring Harbor Laboratory |
As enzimas são capazes de transferir essas cargas elétricas porque alguns dos aminoácidos nas suas estruturas têm as propriedades químicas adequadas para fazê-lo. No caso do FGFR3, existem alguns pontos na sua parte que está localizada dentro da célula ocupada pelo aminoácido tirosina (ver Figura 1). A tirosina pode se ligar a alguns carreadores (transportadores) de fósforo reativo (ATP) flutuantes nas proximidades dentro da célula, mas só irá fazê-lo se o FGFR3 for ativado (ligado) fora da célula. Quando o FGFR3 é ativado (você viu a animação 1?), através de várias complexas alterações em sua forma, ele expõe as tirosinas na sua parte intracelular, que por sua vez atraem o fósforo nas proximidades, iniciando uma série de reações químicas. Você deve levar em conta que estou simplificando muito o fenômeno de "ativação" aqui.
As regiões onde as tirosinas estão localizadas em FGFR3 são chamados "bolsos" de ATP. Estas bolsos estão presentes em muitas outras enzimas com muitas funções diferentes nas células, de modo que essas estruturas não são exclusivas do FGFR3. Nós também chamamos essas regiões de domínios de tirosina-quinase (TKD) (Figura 1).
Ok, finalmente, vemos uma conexão com o título!
Há décadas, os cientistas sabem sobre estes bolsos de ATP. Eles descobriram que no câncer muitas das enzimas como o FGFR3 são utilizadas pelas células malignas para fazê-las crescer mais e mais rápido, então eles começaram a procurar abordagens que seriam capazes de bloquer esses bolsos. Em teoria, sem as reações químicas fornecidas por enzimas como o FGFR3, muitas células cancerosas morreriam e a doença seria potencialmente controlada.
Na verdade, os cientistas já desenvolveram uma série de estratégias para atingir esse objetivo. Uma delas é exatamente através da criação de moléculas que podem se ligar aos TKD, impedindo a enzima de iniciar reações químicas. Estas moléculas são chamadas inibidores de tirosina-quinase (TKI). Já revi muitas delas com atividade contra o FGFR3 aqui no blog, mas na Tabela 1, você verá uma lista mais recente delas.
Tabela 1. Alguns TKIs recentes com atividade contra os FGFRs.
Para entender melhor como essas pequenas moléculas funcionam convido você a assistir a esta rica animação que mostra o mecanismo de ação do lapatinib (Animação 2), um TKI desenvolvidos para bloquear EGFRs, outra classe de enzimas que trabalham de forma semelhante aos FGFRs. Você verá que o lapatinib tem como alvo os bolsos de ATP na parte intracelular do EGFR.
Animação 2. Mecanismo de ação do lapatinib (áudio em italiano).
Utilizar TKIs na acondroplasia?
Uma vez que existem tantas moléculas capazes de bloquear a atividade do FGFR3, por que não vemos mais pesquisas abordando o seu uso na acondroplasia? Esses medicamentos podem ser tomados como comprimidos, uma vez por dia. Não seria perfeito? O problema é que, como mencionado acima, os bolsos de ATP (os domínios de tirosina-quinase) são muito semelhantes em um grande número de famílias de enzimas que trabalham como os FGFRs. Você notou que eu não escrevi FGFR3 no título Tabela 1? Isto é porque nenhum desses compostos lá enumerados são específicos para o FGFR3. Eles também podem bloquear a atividade de outros FGFRs e de outras enzimas celulares. Para ilustrar esse recurso do TKIs, dê uma olhada no mapa das famílias de enzimas abaixo (Figura 3), que mostra os grupos de enzimas que alguns TKIs são capazes de bloquear.
Figura 3. Mapa das enzimas mostrando enzimas afetadas por alguns dos mais velhos TKIs. Cada ponto colorido significa que o TKI terá alguma ação sobre aquela enzima. Note-se a forma como o mapa é desenhado, como uma árvore vista de cima
Note
o grande número de enzimas afetadas por esses TKIs. Imagem de:Stjepanovic N & Capdevila J. Biologics: Targets and Therapy 2014. Acesso livre. Reproduzido aqui apenas para fins educacionais. |
Afetar diversas enzimas diferentes e suas funções, ao mesmo tempo, pode representar um enorme problema. Vários efeitos indesejados podem surgir quando essas drogas são utilizadas para tratar o câncer. No entanto, alguns dos efeitos adversos são toleráveis ou aceitáveis devido à natureza da doença, e também porque, apesar de afetar várias enzimas ao mesmo tempo, inibidores de tirosina-quinase tendem a ser menos tóxicos do que o arsenal de quimioterapia mais antigo que continua a ser usado hoje em dia para lutar contra o câncer.
De fato, muitos TKIs como os acima mencionados já estão sendo utilizados na prática clínica para o tratamento de várias formas de câncer, mas apenas em adultos. Como sua atividade é promíscua podemos prever que os TKIs poderiam ser perigosos para o uso em crianças, cujos corpos estão em crescimento. Essas enzimas participam de processos fundamentais de desenvolvimento e bloqueá-las em uma criança poderia causar muitas consequências ruins.
Pesquisadores como o Dr. Moosa Mohammadi, da New York University, e a Dr Kalina Hristova, da Johns Hopkins University , tem trabalhado duro para entender melhor o grupo de enzimas FGFRs e/ou os bolsos de ATP. Eles criam modelos computadorizados em 3D das enzimas, tentando mapear onde os aminoácidos estão localizados para que possam prever como estas enzimas trabalham e assim ajudar a serem desenvolvidas novas moléculas para caber nos lugares certos, embora isto não seja fácil de fazer. Você pode ver o trabalho do Dr. Mohammadi fazendo uma simples pesquisa no Pubmed.
Os anti-FGFR atuais não podem ser utilizados para tratar a acondroplasia
Talvez devido aos riscos previsíveis, é improvável que os atuais inibidores da tirosina-quinase possam ser utilizados na acondroplasia. Há evidências em testes de laboratório que eles funcionam (1), mas, por causa de sua falta de especificidade, esses TKIs não são candidatos a chegar serem utilizados clinicamente para tratar a acondroplasia.
Para trazer mais dados sobre a utilização de TKIs na acondroplasia, o grupo liderado pelo Dr. Pavel Krejci, um pesquisador entusiástico na área do FGFR3, acaba de publicar um convincente estudo no qual exploraram exatamente o uso de alguns desses TKIs conhecidos por serem mais específicos para as enzimas da família FGFR em condrócitos e culturas de osso (2). Alguns dos inibidores de tirosina-quinase testados no seu trabalho estão listados na Tabela 1 acima. Após a realização de uma longa série de testes, tanto em culturas de células, cultura de osso e em modelos animais, o grupo concluiu que seria arriscado usar os atuais TKIs em desenvolvimento na acondroplasia, exatamente porque eles bloqueiam outras enzimas importantes para o desenvolvimento do organismo em crescimento.
Exclusividade é difícil de alcançar
Para entender por que essas moléculas criadas para bloquear os bolsos de ATP afetam várias enzimas, vamos voltar ao mapa das enzimas acima e conferir a sua distribuição. Você notará que as hastes das famílias des enzimas surgem de um tronco principal, como em uma árvore. Isto significa que, embora existam centenas de enzimas diferentes hoje, todas eles vieram de alguns poucos antepassados, e por isso mantém uma grande semelhança entre si, o que é chamado pelos cientistas de homologia. Os quatro FGFRs são muito semelhantes, compartilhando mais de 50% da sua estrutura entre os quatro membros (3).
Como assinalado por vários investigadores, incluindo o Dr. Krejci, uma molécula bem sucedida do grupo TKI para o tratamento da acondroplasia terá de ser muito seletiva para o FGFR3, com nenhum efeito nas proteínas irmãs ou em enzimas de outros grupos. Isso vai levar ainda algum tempo mais para se alcançar, e o sucesso será baseado, pelo menos em parte, em aperfeiçoar a capacidade de projetar modelos de enzimas no computador que sejam capazes de simular seu estado natural e sua dinâmica na célula viva.
Isto apenas significa que precisamos estar abertos para as várias opções disponíveis para enfrentar enzimas hiperativas como o FGFR3 na acondroplasia. Bolsos de ATP têm sido os alvos mais pesquisados porque eles são fáceis de atingir. No entanto, existem outros locais na estrutura da proteína que podem ser abordados. Convido você a rever os artigos anteriores no blog. Você vai descobrir que há muitas idéias por aí, esperando por um desenvolvedor que não esteja pensando somente nos alvos mais fáceis de alcançar.
Referências
1. Jonquoy A et al. A novel tyrosine kinase inhibitor restores chondrocyte differentiation and promotes bone growth in a gain-of-function Fgfr3 mouse model. Hum Mol Genet 2012;21(4):841-51. Free access.
2. Gudernova I et al. Multikinase activity of fibroblast growth factor receptor (FGFR) inhibitors SU5402, PD173074, AZD1480, AZD4547 and BGJ398 compromises the use of small chemicals targeting FGFR catalytic activity for therapy of short stature syndromes. Hum Mol Genet 2015 Oct 22. pii: ddv441. [Epub ahead of print].
3. Ho HK et al. Current strategies for inhibiting FGFR activities in clinical applications: opportunities, challenges and toxicological considerations. Drug Discov Today 2014 Jan;19(1):51-62.
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